Quando, em 1647, o rei João IV emite o Alvará de construção do novo mosteiro para as clarissas de Coimbra fica desde logo determinada a sua sumptuosidade, dada a previsão de se vir a erigir em Mosteiro Real, ou seja, a capela-mor podia vir a receber sepulturas de reis e rainhas e devia ser considerado também um palácio anexo, se bem que comunicante, para a possibilidade de albergar os membros da família real.
Um ano mais tarde, Frei João Turriano fica encarregado da traça do edifício, situando-o no Monte da Esperança, perto da ermida com o mesmo nome e bem no alto, para dirimir os problemas com as cheias que, durante cerca de três séculos, tanto tinham atormentado as monjas.
As obras decorreram durante mais de cento e vinte anos. Já em pleno período pombalino, os engenheiros militares Carlos Mardel e Guilherme Elsden estavam ainda a terminar os claustros. Mas a sumptuosidade foi garantida e o seu carácter áulico ficou bem patente até hoje.
Como todas as propriedades das ordens monásticas, o mosteiro teve uma existência atribulada a partir de 1834, data da extinção das ordens religiosas, e só em 1911, no dealbar da Primeira Guerra Mundial, é entregue ao exército. A capela-mor e o claustro, por sua vez, já pertenciam à Real Confraria da Rainha Santa Isabel desde o final do século XIX, 1997-98. É então que o exército toma conta da parte norte — a ala de recolhimento — e da cerca do complexo edificado e aí permanece durante quase todo o século XX. Mas eis que paulatinamente, coincidindo com a viragem para o século XXI, o Estado abandona literalmente o monumento, “sacudindo” as responsabilidades pela sua gestão e manutenção. O Mosteiro Real de Santa Clara-a-Nova fica esquecido e quase abandonado, ninguém se lembra do que está para além da igreja, do claustro e da fachada que encerra o adro de entrada a norte.
O culto de Isabel de Aragão, da Rainha Santa, é o mais genuíno culto da cidade de Coimbra. É aquele que melhor espelha a identidade discreta, mas intrínseca, dos seus habitantes. Contraditoriamente, ou talvez não, pelo menos nos últimos tempos, é também aquele que menos transparece para fora, só é vivido de dentro para dentro. É um culto que só quem é de cá ou, por alguma razão, passou a ser de cá, sabe respeitar e viver. É um culto religioso, sim, mas também é eminentemente cultural, passe a redundância.
Em 2015, é precisamente um desígnio da cultura que vai entregar o velho Mosteiro de Santa Clara-a-Nova à fruição das/os cidadãs/ãos — a primeira Bienal de Arte Contemporânea de Coimbra, a Bienal AnoZero. A partir daí, periodicamente, a cidade e o país passaram a usar o mosteiro como nunca o tinham feito antes, passaram a visitá-lo periodicamente, a fruir a arte contemporânea na monumentalidade perene dos seus corredores, no recato das suas celas, na imensidão dos espaços da cerca, tudo locais que antes foram exclusivamente acessíveis à comunidade religiosa e, posteriormente, à comunidade militar.
Agora o Estado resolveu dar sequência ao disposto no despacho conjunto das Finanças e da Defesa Nacional e autorizar a concessão do edifício no âmbito do programa Revive, para exploração de empreendimentos turísticos, no caso em apreço, um equipamento turístico de luxo. A manutenção da presença da Bienal AnoZero no decurso futuro dessa concessão foi considerada uma eventualidade, está dependente de um pequeno factor de majoração pontual dos candidatos à exploração. Pode acontecer ou pode não acontecer.
Se não acontecer, será profundamente injusto, o nosso culto da percepção arquitectónica e artística da totalidade do mosteiro ficará irremediavelmente decepado, pelo menos por mais meio século. Vamos novamente deixar de poder usufruir do Mosteiro Real para este nosso outro culto discreto. Não está certo.