ezes sem conta, os salários dos trabalhadores têm sido acusados, falsamente, de serem responsáveis por despedimentos e encerramentos de empresas, por bloqueios à competitividade, por criação do vício de se "viver acima das possibilidades", por espirais inflacionistas.
A condição de suspeitos dessas maldades permite que, perante qualquer "crise", os primeiros disparos do poder económico e do poder político, em nome da resolução dos problemas, sejam feitos exatamente sobre os salários. Assim está a acontecer com a atual crise.
A cúpula do Banco Central Europeu (BCE) e os banqueiros do sistema, incluindo o governador do Banco de Portugal, andaram a clamar contra atualizações salariais que pudessem compensar a inflação e a pregar que essas hipotéticas atualizações agravariam o "surto inflacionista". É sabido que os salários estão a sofrer forte perda (em valor real) e a inflação continua elevada. Todavia, a presidente do BCE, interrogada esta semana sobre se o ciclo de subidas de preços atingirá o pico em março, respondeu: "Não, não, não. Não atingiremos o pico em março. Ainda temos muito por fazer", colocando de novo a necessidade de se conter a evolução dos salários.
Segundo notícias do "Expresso" da passada quinta feira, parece que aqueles banqueiros admitem agora "que as margens de lucros das empresas tinham aumentado, quando, por via do aumento de custos, deveriam estar a diminuir". E que "o aumento dos custos de produção sentidos pelas empresas nos últimos dois anos estão a ser mais do que compensados pelos aumentos dos preços, sem se notar perda de margem de lucro". Estes hipócritas fazem-nos de parvos.
Somos governados por estes sociopatas - indivíduos com "desequilíbrio patológico que se manifesta num comportamento antissocial e impulsivo ou agressivo" (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa). São antissociais e agressivos porque causadores de desigualdade profunda, de sofrimento e pobreza. O poder político instala-os nas funções (apresentadas à opinião pública como de complexidades que o comum dos cidadãos não entende) e retira-se de responsabilidades atribuindo-lhes "total independência". Ficam, assim, à margem de qualquer escrutínio democrático. Mesmo quando têm provas da responsabilidade dos poderosos, continuam a disparar sobre os mais frágeis.
Não são precisos estudos científicos, para se observar que algumas empresas, em particular pequenas, sofreram com a inflação. Mas as grandes companhias de quase todos os setores estão a acumular lucros, em muitos casos pornográficos, como provam os resultados daquelas que são obrigadas a divulgá-los. Em regra, quem não tem condições para imputar a outrem o aumento de preços são apenas os consumidores finais.
Começou a percecionar-se ainda com a pandemia de covid-19, mas tornou-se evidente com a invocação dos impactos da guerra, que estava em formação uma enorme receita especulativa que, num mercado desregulado, daria origem a um grande bolo saído da inflação. Na fase inicial, o setor financeiro ainda não tinha espaço marcado à mesa do banquete. Nesta União Europeia que se tornou centro do neoliberalismo e da financeirização da economia, o BCE e outras instituições trataram de lhe garantir bom repasto.
É criminoso continuarem a sacrificar os salários, as pensões de reforma e as políticas sociais. Os suspeitos do costume têm mesmo muitas razões para protestar.