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28-01-2023        Jornal de Notícias

Tenho afirmado que a palavra crise se tornou uma das instituições mais poderosas à escala global e no quotidiano da vida dos portugueses. A invocação de crises serve para justificar políticas oportunistas que vão sendo adotadas, com destaque para as que mais sacrifícios impõem aos trabalhadores e aos povos. Relembro esta perspetiva porque a revisão da Constituição da República (CR) em curso pode significar, em áreas sensíveis, a passagem da institucionalização das crises para a normalização das emergências. Diz-se que para facilitar as "respostas às crises".

O presidente da Assembleia da República afirmou, no início do processo de revisão, que "há urgências reconhecidas". Ele e dirigentes políticos que puxam por esta revisão dão como exemplo a necessidade de se enfrentar eficazmente "emergências sanitárias". Infelizmente, viveremos tempos de emergências de variado tipo: altera-se a Constituição da República sempre que for declarada uma? O que funcionou tão mal na resposta à pandemia, que imponha uma revisão constitucional?

Na crise anterior (2010/2015), os "troicanos" pregaram a necessidade de, em contextos como aquele, poderem sacrificar-se direitos do trabalho e sociais fundamentais, para "salvaguardar a economia". Ora, esse austeritarismo prossegue. Por outro lado, o desequilíbrio de poderes no sistema de relações laborais e em órgãos de diálogo e negociação, como é o caso da Comissão Permanente de Concertação Social ou do Conselho Económico e Social, é uma evidência que não deve ser camuflada numa hipotética alteração ao seu enquadramento constitucional.


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A pandemia ainda anda por aí. Pegar em observações de contexto de emergência e transformá-las em urgências reconhecidas pode ser perigoso. Transferir poderes sobre matérias delicadas onde estão em causa direitos humanos, cívicos e políticos e colocá-los na mão do poder executivo não será bom caminho. O enfraquecimento dos poderes do Parlamento, em regra, significa maior desproteção dos cidadãos.

Outro tema trazido para o campo das "urgências reconhecidas" é o dos metadados. Sabemos que a evolução tecnológica e comunicacional será contínua e influenciará muito as respostas necessárias neste tema. São grandes os perigos de violação de dimensões da vida privada vindos da criação de instrumentos para a ação da polícia, de procedimentos de serviços públicos ou das apropriações de dados por entidades privadas. Esta matéria é muito sensível.

O individualismo exacerbado do neoliberalismo (inculcado na cabeça de muitos deputados) acantona as pessoas, autorresponsabilizando-as pelo que deve e não deve ser da sua responsabilidade. Esse individualismo enfraquece os direitos dos indivíduos enquanto membros da comunidade em cuja vida têm de participar. Como sem comunidade não existe democracia, coloquemo-nos alerta.

Constitucionalistas consagrados, diversos atores políticos e institucionais têm colocado fortes reservas a esta revisão constitucional. Lamentavelmente, o presidente da República, que é um especialista na matéria, vai fazendo afirmações avulsas, ao ritmo da sua prática de comentador-mor do reino. Falta análise fundamentada sobre o papel da Constituição, a necessidade e oportunidade desta revisão, e o que se deve fazer para diminuir violações de princípios e normas constitucionais. Um bom debate público sobre estas matérias até poderia mobilizar a juventude.

Procuremos agir contra o taticismo político e por um futuro que não seja uma sucessão de emergências.


 
 
pessoas
Manuel Carvalho da Silva



 
temas
individualismo    crise    pandemia    economia