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28-01-2023        Público

Caricaturar formas de expressão autistas e outras é uma violência de representação, é devolver uma imagem continuamente estigmatizante.

“Que decisão lamentável! E na próxima peça, quando houver uma personagem com autismo? Tem que se contratar um actor dentro do espectro? E se o personagem tiver uma deficiência física? O actor tem que ser deficiente motor?” Lê-se num dos comentários da página de Facebook do Teatro São Luiz, no seguimento da alteração do elenco de Tudo sobre a minha mãe. O protesto bem conseguido de activistas contra o transfake teve, ao longo da semana, repercussões ao longo de todo um espectro de pessoas excluídas da representação.

O argumento usado a favor de que a representação de pessoas trans deve ser feita por pessoas trans, a representação de pessoas deficientes deve ser feita por pessoas deficientes e a representação de pessoas autistas deve ser feita por pessoas autistas relembra práticas extremamente desumanizantes como o blackface, onde pessoas brancas pintavam a cara de negro para caricaturar pessoas negras. Os negros podiam estar em palco, desde que também tivessem a cara pintada, porque a sua presença era demasiado perturbadora para a plateia. Hoje estas práticas são consideradas por muitas pessoas (não por todas) racistas e abjectas. Recordar o blackface no teatro permite-nos: 1) olhar com distanciamento histórico práticas de exclusão de pessoas do palco e 2) atentar na representação que se faz no palco das pessoas estigmatizadas. E entre estas duas coisas há um espectro.

O blackface não era “só” pintar a cara de preto, e muito menos ir ao encontro à vida dos escravos nas plantações. O blackface não era um exercício de empatia. Era a criação dum ridículo. E o ridículo pode manter-se mesmo sem a caricatura – que o digam as pessoas com displasia óssea e baixa estatura, vulgo, anões, na indústria cinematográfica, onde têm lugar há muito tempo. Os anões ficam reféns de papéis de anões, colados a uma imagem cómica ou a papéis de fantasia. Os seus corpos em palco não foram suficientes para contar a sua história enquanto pessoas. Tampouco vemos muitos papéis em cadeira de rodas. Para muitos, seria certamente uma transgressão. Basta ver o efeito da escolha da Disney de Halle Bailey para Ariel, a sereia negra. É com a transgressão que vemos que o corpo conta. Podia estender o argumento a todos os que são demasiado qualquer coisa que os remete para o burlesco, ao exagero.

Podemos, desta forma, dizer que o teatro não é inclusivo ou, pelo menos, que não é para todos. E, no entanto, o teatro tem tanto a virtude de excluir como de incluir, pela dupla capacidade que tem de representar – por um lado, sair duma vida para entrar noutra imaginada, e por outro, re-presentar – devolver algo após um processo de interpretação.

Um teatro que se queira inovador tem de incluir representações novas, produzidas a partir da interferência. Isto se quiser produzir um “nós” que contemple a empatia através da diferença.

Colar papéis a corpos reféns que, muitas vezes, não podem fazer outra coisa senão deles mesmos e negar-lhes essa única possibilidade de representação, é o máximo da exclusão. Caricaturar formas de expressão autistas e outras é uma violência de representação, é devolver uma imagem continuamente estigmatizante, reproduzida num monólogo de como a diferença é vista.

Inclusão é Anthony Hopkins – o Sir que não fica colado a papéis de autista e pode fazer o que quiser a partir do seu corpo. Mas isso é porque o seu autismo é invisível aos olhos. Seria muito bom que os seres humanos conseguissem ver além do corpo. Infelizmente, mostrar o corpo é a única forma de fazer com que as diferenças sejam vistas como um dado, e não como uma opção, uma escolha, um adereço removível.

A luta por estar no palco é uma luta por apresentar-se. Tomar lados entre pessoas vulneráveis – seja pela precariedade laboral, ou pela empatia assimétrica que temos por uns em relação a outros, só revela que o verdadeiro espectro não é visto – o espectro do capitalismo, que por razões orçamentais continua a reproduzir as hierarquias e negar o apoio social e cultural tão necessário ao florescimento e à expressividade humana, livrando-a da violência atroz do preconceito, para devolver à sociedade um retrato com todas as cores.


 
 
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Rita Serra



 
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