Usado hoje de uma forma constante em artigos de opinião, notícias e reportagens, mas também em campos do conhecimento como a história, a ciência política, a filosofia ou a sociologia, o conceito de totalitarismo é, ao mesmo tempo, útil e questionável. Para ser útil deve utilizar-se em contexto, e não como um chavão aplicado indiscriminadamente, segundo formas que chegam a tocar o absurdo. Exemplificando, ainda há pouco tempo encontrei uma referência ao estilo de direção pouco dialogante do presidente de um grande clube de futebol caraterizando-a como «totalitária», o que é, obviamente, tão impreciso quanto disparatado. Já a sua dimensão questionável depende do caráter não consensual da pluralidade de significados que realmente encerra. A mesma que faz com que parte da esquerda o rejeite liminarmente e certa direita dele se sirva de uma forma politicamente obscena.
É possível, todavia, sair do labirinto em que o conceito, de uma forma crescente, tem sido enredado. Desde logo aceitando como útil, embora parcial, a caraterização proposta, ainda no contexto da Guerra Fria, por Carl J. Friedrich e Hannah Arendt. Usaram-no para interpretar, de uma forma tendencialmente uniforme, os regimes políticos centralistas, violentos, policiais, censórios e fortemente pautados por uma ideologia rígida, do fascismo italiano, do nacional-socialismo alemão e do estalinismo, bem como das suas diferentes réplicas nacionais. O principal defeito desta conceção, ainda muito utilizada, consiste na padronização como comum daquilo que é efetivamente diferente: os objetivos dos dois primeiros relevaram o papel retrógrado das elites sociais e das nações, enquanto o último, apesar das formas monstruosas que adotou, teve uma fundamentação emancipatória de teor igualitário.
Já a filósofa brasileira Marilena Chauí aplicou o conceito à realidade global do neoliberalismo, usando-o para identificar sociedades homogéneas. Ainda que sob regimes formalmente democráticos e desprovidos de censura, estas tendem a contrariar, pela intervenção dos poderes político e económico, e também de uma informação manipulada ao seu serviço, a pluralidade de modos de vida, culturas, crenças e opiniões. Nestas sociedades, mesmo sem a presença declarada de uma ideologia imposta é possível determinar escolhas, influenciar comportamentos e contrariar a diversidade, assim tolhendo a liberdade dos cidadãos. Mais recentemente, o regresso dos nacionalismos e a voga do populismo têm acentuado essa produção de modelos efetivamente totalitários de representação e de governo do mundo.
É devido a esta ameaça que, como apontou Enzo Traverso, apesar da possível ambiguidade da aplicação do conceito de totalitarismo no domínio da história, se justifica plenamente o seu uso no da teoria e da sociologia política, armando os programas democráticos que combatem as formas de uniformização do mundo, as práticas da prepotência, os sistemas imperiais e as ditaduras, mesmo aquelas formalmente «democráticas». Ele pode ajudar caraterizar as propostas que tendem a impor – como sugerido nos romances distópicos Nós (1920), de Evgueni Zamiatine, e 1984 (1949), de George Orwell – uma manipulação «total» das consciências. Se não for banalizado, se for usado com rigor e engenho, servirá, neste mundo globalizado que habitamos, para identificar os monstros que pretendem, de forma clara ou oculta, reduzir os humanos à condição de peças desprovidas de vontade e facilmente manipuláveis.