Dizia-me alguém, num registo ao mesmo tempo pedagógico e trocista, que «iluminismo não é palavrão». Não posso estar mais de acordo. A afirmação cega de um relativismo radical, assente na ideia absurda segundo a qual a tradição cultural europeia – sem dúvida associada também a formas de injustiça, opressão e desigualdade – é pobre e nociva, levando muitas pessoas sectárias ou sem informação a ignorar o papel emancipatório dos princípios basilares dessa corrente cultural laica que se afirmou no século XVIII. Na direção contrária, sectores do pensamento contemporâneo, defensores de formas de autoritarismo e de controlo dos cidadãos, olham-na como instrumento fundador de um conceito de liberdade e progresso municiador nos séculos seguintes de dinâmicas democráticas e revolucionárias, que rejeitam e pretendem destruir.
Tzvetan Todorov encontrou na «filosofia das Luzes» que lhe deu forma três princípios que condensam, ainda que hoje sob renovadas condições históricas, um alcance do iluminismo que ainda permanece funcional: em primeiro lugar, a autonomia vital do indivíduo perante a intervenção dos poderes que o procuram dominar; em segundo, a deslocação do humano para um lugar central na interpretação e na transformação do mundo; em terceiro, a dimensão universal de valores e sociabilidades comuns que devem coexistir com a imprescindível diversidade cultural. Qualquer destes princípios pode ter data e lugar de nascimento, mas transcende-os sempre. Por isso, Todorov reconheceu a presença dos seus traços essenciais em tradições culturais da Índia, da China e do mundo islâmico, não o tomando como uma extravagância europeia e eurocêntrica.
É este sentido valorizador da influência dos ideais do iluminismo na atualidade que afirmou o historiador Zeev Sternehell ao contestar, em The Anti-Enlightenment Tradition, quem defende a ideia de que «o indivíduo não faz sentido a não ser quando mergulhado na comunidade», excluindo a sua relação com um universal que o une aos outros. Quem, de forma redutora, considera nocivos os valores iluministas, observando um mundo espartilhado, branco ou preto, e não compósito e multicolor. Como se, em matérias de história, cultura, língua e até religião, o uno e «identitário» devesse sobrepor-se ao múltiplo e complexo. Como se o que separa deva estar à frente do que aproxima e cria redes de liberdade, compreensão e empatia. Sternehell propõe «a defesa do universalismo e do racionalismo» contra as identidades agressivas e o retorno do obscurantismo religioso ou político a elas ligado, como tarefa atual, «urgente e complexa, à medida de todos os desafios».
Esta proposta implica uma adaptação programática, às realidades de hoje, da velha aspiração dos iluministas mais radicais: a construção de um mundo melhor porque composto de cidadãos autónomos, livres, fraternos, informados e abertos ao outro. Vivendo em comunidade, aceitando a diferença cultural, e principalmente pensando pela própria cabeça. É verdade que não existe um iluminismo sem cheiro, puro, completo, isento de perigos e tumulto, que transporte consigo a chave da felicidade, da justiça e do entendimento; todavia, aquele que a História legou pode ser ainda, na sua dimensão utópica, otimista e universalista, uma semente de esperança. E que melhor época para pensar a utopia como sombra do futuro do que esta de balanço do ano e de mudança do calendário?