Há poucos dias atrás, numa notícia inserida nas páginas deste mesmo jornal, li uma referência a danos na “estrutura ecológica urbana” em Coimbra, alegadamente ameaçada pelas obras do Sistema de Mobilidade do Mondego, comummente designadas por Metrobus. Para que uma tal coisa — a tal “estrutura ecológica urbana” — possa, sequer, existir, a Região de Coimbra, que não só a cidade, necessita de uma rede minimamente decente de transportes em comum, precisa de caminhar com passos firmes e decididos em direcção a um sistema de mobilidade atraente, integrado e inequivocamente competitivo com o (ab)uso do automóvel individual, uma rede que potencie a mobilidade socialmente mais equilibrada, que possa servir, de modo altamente eficaz, todos os cidadãos e todas as cidadãs e não só uma elite bem pensante mais esclarecida. A cidade que está no cerne desse sistema de mobilidade precisa sobretudo de rever e de actualizar a sua rede central de transportes públicos e integrá-la racionalmente nos sistemas gerais previstos para a região e para o país. Isso pressupõe adaptar as infraestruras urbanas e regionais a esse novo sistema integrado, o que constitui um processo ambicioso nos propósitos, árduo e moroso na concretização, sujeito a prazos draconianos, porque o financiamento externo escasseia e exige rapidez de execução.
Tenho acompanhado, desde o início e sempre com uma visão externa, todo este processo que se vem arrastando ao longo das últimas quatro décadas. Sim, quatro décadas. Perguntar-me-ão, era este o sistema que eu acharia ideal para Coimbra e para a região? Não! Também o tenho vindo a afirmar inequivocamente ao longo desse tempo. Um sistema de eléctrico rápido, tal como chegou a estar projectado há cerca de dez anos atrás, com estudo e declaração de impacto ambiental, embora carecesse de um investimento inicial superior, acabaria por ser muito mais sustentável e, sobretudo, muitíssimo mais resiliente, como hoje sói dizer-se. Mais, as empresas envolvidas neste processo, bem como as suas parcerias públicas e privadas e as entidades accionistas, com as municipalidades à cabeça, deveriam ter também investido muito mais nos processos de inserção urbana e paisagística. Já não estamos no século XIX, uma infraestrutura, qualquer que seja, não é só um dispositivo funcional abstracto e desligado dos processos qualificação urbana e territorial que todos temos como missão fazer. Qualquer cidadã/ão empenhada/o sabe isso, as/os arquitectas/os sabem-no quase intuitivamente, deveriam até tê-lo geneticamente inculcado, devia estar obrigatoriamente associado ao seu ADN social e profissional. Eu escrevi-o insistentemente, fui sempre criticando essa actuação ao longo destas tais malfadadas quatro décadas. Sou, por isso, independente e, sobretudo, insuspeito, nas declarações que ora aqui junto.
O que hoje, em 2022, quase 2023, temos no terreno é um processo de construção de uma rede de mobilidade urbana e regional minimamente adequada e consentânea com o que se está a fazer por quase todo o mundo, felizmente que já não é só na Europa. É o ideal para Coimbra? Não, repito que me parece claro que não é, mas de entre tudo o que foi ocorrendo nestas últimas quatro décadas, entre fogachos de pólvora seca e golpes de teatro, entre fantasias políticas e megalomanias infundamentadas, é aquele que foi mais longe na concretização, no contacto com a realidade, nas possibilidades de efectivação.
Assim, e finalmente, podemos estar em face da criação de um Sistema, não da mera concretização de uma infraestrutura isolada.
Sabemos o que é, e o que tem sido, o investimento público dos sucessivos governos centrais em Coimbra e região. No plano das acessibilidades rodoviárias (a miséria do IP 3; a sempre adiada finalização do IC 6; a finalização da A 13; a ligação a Poiares alternativa à EN 17; os acessos a Montemor pela continuação da A 31, a Mealhada e Condeixa pela melhoria do IC 2, etc, etc.). No plano das acessibilidades ferroviárias, tudo se pode espelhar na miséria da Estação Velha. No plano dos equipamentos de saúde, continua tudo no limbo, com excepção do IPO. No plano dos equipamentos de justiça, o desespero pelo novo Palácio de Justiça e o aparecimento do Tribunal Constitucional, numa manhã de nevoeiro. No plano da infraestruturação hidráulica e da prevenção de inundações, a barragem de Girabolhos. E por aí adiante, a lista nunca mais acaba…
Já no que diz respeito a um sistema de mobilidade integrada, urbana, regional, nacional e, desejavelmente, internacional esta é a última, talvez mesmo a única, oportunidade para concretizar alguma coisa palpável e futurante.
Por isso, não faço ideia de quais são as intenções de uma tal providência cautelar para, uma vez mais, parar as obras, por mais outros trinta, quarenta anos, ou mesmo para sempre. O que sei é que ninguém pôs uma providência cautelar quando o Governo parou o processo, nem quando a empresa pública da altura desatou a arrancar carris e sulipas no Ramal da Lousã, a torto e a direito. Mas se formos aos arquivos deste jornal, e de outros, podemos ver quem escreveu e se insurgiu veementemente com isso.
Se a providência cautelar for aceite, não duvidarei minimamente da competência técnico-jurídica da decisão. Mas também nada me impede de pensar que podemos estar em presença de um crime ambiental, um crime contra a última possibilidade de uma mobilidade mais sustentável em Coimbra e na região. E também penso desde já que alguém de direito, talvez mesmo o Ministério Público, deveria interpor uma providência cautelar a esta providência cautelar.