Centro de Estudos Sociais
sala de imprensa do CES
RSS Canal CES
twitter CES
facebook CES
youtube CES
10-12-2022        As Beiras

Com dezenas de prisões de pessoas com algum destaque social e político, acaba de ser desmantelada na Alemanha uma conjura, sustentada em teorias da conspiração, destinada a preparar a tomada do parlamento e a provocar um golpe de Estado, da qual sairia de seguida uma revisão das condições de rendição do país após a Segunda Guerra Mundial. A reação imediata de muitos de nós foi de incredulidade, pois geralmente damos como assente que a Alemanha é uma democracia estabilizada e que os traumas associados à ascensão e à queda do nazismo estariam enterrados. Esta é, todavia, mais uma prova da ascensão da extrema-direita revanchista fundada agora nas dinâmicas do populismo, nas falhas da memória coletiva e na visível apatia da democracia.

Por muito tempo a afirmação dos diferentes fascismos foi tomada como fenómeno datado, que coincidiu com o período entre as duas guerras mundiais e terminou, de uma forma que se acreditou definitiva, com a derrota de Hitler e Mussolini. Na Europa, só Espanha e Portugal se mantiveram como aberrações, se bem que em versões que já tinham perdido a dinâmica e apenas se conservavam graças a uma conjugação de interesses que tinha o exército, a igreja católica e algumas elites como espinha dorsal. Estas experiências retrógradas ruíram nos meados dos anos 70 e apenas na América latina se mantiveram situações com as quais é possível estabelecer analogias. No resto da Europa, pelo menos na da democracia representativa, os movimentos neofascistas eram encarados como grupos de bandidos que não representavam um perigo real.

Tudo isto se alterou bastante após a queda do Muro de Berlim e da derrocada a leste das experiências do «socialismo real», enquanto, num mundo agora unipolar e não espartilhado em blocos antagónicos, a expansão do capitalismo neoliberal parecia tornar-se o alfa e o ómega dos projetos políticos com vocação de poder. Acentuava-se uma conjuntura a que Daniel Bell chamou «o fim das ideologias» e Francis Fukuyama depois considerou marcada pelo «fim da história». Tratou-se de uma deriva interpretativa que via como inúteis as grandes ideologias mobilizadoras de massas, enquanto entendia que o desenvolvimento económico e social detinha já um modelo perfeito, estabelecido para todo o sempre, diante do qual, como afirmou Margaret Thacher, não existia alternativa ou lugar para profundas transformações.

Ocupando o espaço vazio deixado pelas convicções, agora ausentes, emergiu então a «política dos interesses», fossem estes os das elites ou os das nações, sempre associada a estratégias populistas que, como os antigos fascismos, mobilizam os cidadãos mais pelas emoções e pelas vantagens imediatas do que através de projetos apoiados na vontade de regeneração e de justiça. Foi neste contexto que reapareceram de um modo visível as posições de extrema-direita, agora sem a pretensão de regressar aos modelos revanchistas do fascismo em ascensão até aos anos 40, mas usando formalmente os sistemas democráticos para disseminar propostas fundadas no ultranacionalismo, na desigualdade, no racismo, na xenofobia, no sexismo e na exclusão da diversidade. Usando para o efeito a manipulação da verdade e a mitificação do conceito de «povo».

Em alguns Estados onde governam, como a Hungria e a Polónia, mas também onde se aproximam do poder, como em Itália, França, Espanha, Rússia ou Alemanha, para ficar aqui pela Europa, estas correntes populistas e de extrema-direita servem-se de múltiplas estratégias, sendo uma das principais a exploração da apatia dos cidadãos e a lassidão da própria democracia, fundada na demagogia, na ignorância, na ausência de memória e na manipulação da história, mas também na falta de empenho cívico causada pela atuação errática ou oportunista de muitos partidos democráticos. O historiador argentino Federico Finchelstein lembra que «o populismo não é o fascismo», apresentando-se até como «uma forma de regeneração democrática», mas substitui-o na tentativa de expandir a desigualdade, a opressão e o ódio. Em Portugal ele também não dorme.


 
 
pessoas
Rui Bebiano



 
temas
extrema-direita    democracia    populismo    fascismo