O fantasma que assombra hoje os portugueses tem um nome: a luz ao fundo do túnel. Por agora, os portugueses não podem saber se a luz ao fundo do túnel é a luz diurna do ar livre ou o farol de um comboio que corre velozmente em sua direcção. Sejam de direita ou de esquerda, ou nem uma coisa nem outra, os portugueses gostariam que a luz que imaginam fosse a primeira mas temem que seja a segunda. Este é o fantasma português e domina por inteiro o sistema político. Há também os portugueses que não vêem qualquer luz e a que gostariam de ver não seria ao fim do túnel e sim dentro do túnel, para não baterem com a cabeça nas paredes enquanto caminham. Estes são os portugueses-fantasma de que o sistema político não se ocupa.
O fantasma da luz ao fundo do túnel tem dois efeitos políticos. O primeiro é que quem está no governo se serve dele para não respeitar o presente e actuar apenas legitimado pelo futuro que diz controlar. Todas as rupturas com o presente são imagináveis e todas são exigidas para que a luz ao fundo do túnel seja a luz diurna do ar livre. Tudo o que pode ou não ocorrer nos próximos meses condicionará durante décadas a vida dos portugueses. Desde o 25 de Abril de 1974 que o futuro de curto prazo não se parecia tanto com o futuro de longo prazo. A vantagem do governo neste domínio é governar um país habituado a confundir sinais meteorológicos com sinais divinos. À partida, o milagre de Fátima não é mais ou menos credível que o da Troika. Pagam-se promessas com a mesma devoção com que se pagam dívidas. Em ambos os casos, é apreciado ir de joelhos.
O segundo efeito político do fantasma português é dividir duplamente a oposição política de esquerda. A primeira divisão é sobre a própria natureza do túnel. Para uns (PS), não há dúvidas sobre a natureza do túnel: foi sendo construído nos últimos tempos com as dificuldades em manter o Estado social num contexto internacional adverso. Para outros (BE e PCP), esse túnel é uma pequena tubagem dentro de um túnel muito maior: o túnel em que a burguesia portuguesa se sentiu fechada desde que, em 11 de Março de 1975, perdeu o controle da revolução de Abril e, em 25 de Novembro de 1975, não pôde impedir que a solução pós-revolucionária fosse a concessão de tantos direitos sociais aos trabalhadores. Ao fundo desse túnel vê agora a luz: a chegada, por fim, do capitalismo liberal ou neoliberal. Também a burguesia vê um comboio em alta velocidade, mas muito diferente do comboio-fantasma, um comboio real que vem por trás e com o objectivo benévolo de a empurrar para a saída do túnel, o comboio da Troika. A burguesia que sai do túnel não é a mesma que entrou nele (é menos produtiva e mais comerciante, menos CUF ou Lisnave e mais Continente ou Pingo Doce) mas os interesses e o alívio são os mesmos.
A segunda divisão na oposição de esquerda apresenta-se como um duplo dilema. Para o PS, se se vier a verificar que a luz ao fundo túnel era o ar livre, o mérito será da direita, se, pelo contrário, se verificar que a luz era do farol do comboio, nada poderá fazer para o parar, até porque foi este PS quem o pôs em movimento ao negociar com a Troika. Só um outro PS o poderá fazer e para isso é necessário tempo e engenho. Por sua vez, o BE e o PCP sabem de antemão que a luz ao fundo do túnel é do farol do comboio e que este se aproxima velozmente, mas, como o túnel é muito grande, nada podem fazer sem a colaboração do PS. O problema é que com este PS não podem colaborar e com o próximo será preciso esperar um tempo que, sobretudo para o BE, pode ser fatal.
Enquanto o fantasma português alimenta o sistema político, os portugueses-fantasma sentem-se sem representação. Entre eles, há os que sabem que a luz que vêem é a do comboio veloz na sua direcção e imaginam que se houvesse luz dentro do túnel, talvez fosse possível imobilizar o comboio (por exemplo, renegociando a dívida já) e passar, certamente com dificuldade, ao lado dele a caminho do ar livre. Nesse grupo me incluo e talvez muitos dos jovens indignados ou à rasca.