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29-10-2022        As Beiras

Há alguns dias, perante uma fotografia dos membros do novo Comité Central do Partido Comunista Chinês rigidamente perfilados na tribuna do Congresso destinado a estender e reforçar o mandato de Xi Jinping, senti um frémito de horror. Não é preciso ser semiólogo para ler aquele rebuscado cerimonial, a fixidez dos corpos robotizados, a impassibilidade dos rostos, a coreografia de cores e gestos, incluindo-se nestes a exclusão forçada, diante das câmaras, de Hu Jintao, o anterior presidente caído em desgraça. Mais que traduzir «uma especificidade cultural», como certas boas almas julgarão, eles visam impor internamente a aceitação incontestada da autoridade e, no plano externo, o reconhecimento da força. Se ao cenário juntarmos a quase ausência de mulheres, temos a imagem perfeita de um poder misógino e arbitrário que se celebra a si próprio.

Escrevi nos anos oitenta um livro sobre o espetáculo do poder no universo da política absolutista da era do barroco e no Portugal de D. João V, onde abordava o modo como, com o crescimento da máquina do Estado moderno e a expansão das sociedades complexas, os detentores de altos cargos – convertidos em «prisioneiros do cerimonial», como os designava o historiador John E. Elliott – levaram ao extremo uma ritualização da autoridade destinada a «mostrar quem manda». Esse processo impõe uma visível política de coação, mas serve também, no plano subjetivo, para dissuadir quaisquer formas de resistência ou de contestação. Ele tem lugar desde as primeiras sociedades humanas onde existiu divisão social do trabalho, mas será a partir do século XVII que alcançará uma dimensão sem precedentes.

Não é, por isso, de estranhar, que posteriormente, mesmo em momentos decisivos do trajeto humano como as Revoluções francesa e soviética, as novas formas de ordem política delas emergentes mantiveram um elevado formalismo nos rituais do poder, mesmo quando estes foram, em função de novas ideias, em boa medida redesenhados. As dinâmicas de poder de Robespierre e Napoleão, como as de Hitler, Estaline e Mao, recorreram de forma exacerbada a essa operação de afirmação simbólica da ordem política que conceberam e representaram. Personalidades como Xi Jinping, Putin e, acima de todos, o norte-coreano Kim Jong-um, mantêm hoje este espetáculo de uma autoridade sem barreiras, apoiada no culto da personalidade, que se identifica, num mundo concebido à sua medida, com a hierarquia do comando e com a própria História.

Todavia, este jamais foi um caminho inevitável. Os últimos dois séculos conheceram, com algumas experiências revolucionárias e o progresso das sociedades democráticas, uma resistência a essa exibição do poder enquanto fator de irrefutada autoridade e sinal modelar de um universo abominável. Os anos sessenta, com a sua procura de resistência a todas as formas de autoritarismo foram um tempo dourado desse trabalho pela humanização do poder e da política. Foi essa, aliás, a razão primeira do impacto mundial, sobretudo entre os jovens da época, da revolução cubana e do Maio de 1968, como é essa hoje, apesar dos obstáculos e retrocessos, a marca de proximidade dos regimes democráticos. Ao invés, a ritualização espetacular do poder é a assinatura da tirania. Que uma potência como a China a exiba desta forma assumida é motivo para preocupação. 


 
 
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Rui Bebiano



 
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