Margaret Atwood, ao retratar o atual cenário norte-americano e universitário, grifou: “inventei Gilead. A suprema corte está tornando isso real”. No mundo ficcional, a ação conservadora matiza relações entre homens e mulheres. A vigilância, o controle de corpos e o debate sobre aborto repaginaram-se e encontram destaque desde “condenações individuais”, espetacularização de casos até o “colocar em pauta” a revogação de um marco legal cinquentenário.
Através de lentes dominadoras sobre “saúde reprodutiva” (nunca sexual), décadas de lutas e bandeiras levantadas são menosprezadas. Alguns direitos estão atrelados e são interconectados: decidir sobre seus corpos, sobre representantes e representações (cem anos de sufrágio) e determinação como pessoas em textos legais internacionais. Sim, ao não nomear/mencionar mulheres como cidadãs, pode-se contabilizar que foram “não-pessoas” por muito mais tempo. Outras ações estão também no campo real: esterilização não consentida e mutilação genital acontecem, simplesmente, sem alarde e questionamento. A ordem moral da vez decide.
As críticas das artes e da literatura impulsionam questionamentos éticos, jurídicos, sociais. No distópico The Handmaid`s Tale (1985), a linha teocrática e a suspensão de direitos consolida a (o)pressão sobre subjetividades femininas. A vida imita as artes? Tristes destinos e um continuum de coisificações, negações e violações de direitos. Talvez possamos afirmar que, longe de rasas digressões conjunturais, basta uma rápida pesquisa em meios de comunicação e redes sociais para constatar: instituições alinham-se à extrema-direita e ultraconservadores, deslegitimando o percurso de políticas sociais que no tocante à saúde reprodutiva de mulheres (sejam negras, indígenas, cis, trans, jovens e idosas) foi pontilhado por avanços significativos desde os anos 70.
A promoção de igualdade não pode ser elaborada com pistas retrógradas em qualquer geografia. Constam permissões no artigo 128 do Código Penal (1940) e a interrupção da gestação não deveria estar inscrita em cartilha governamental sob viés punitivista (Brasil, 2022).
Não existe democracia sem participação efetiva e políticas de educação e saúde públicas (sim, o debate sobre aborto, saúde sexual e reprodutiva perpassa tais esferas). A clandestinidade, o não acesso e uma cultura “de dominação” e de estupro de corpos femininos têm compelido à movimentação social na América Latina. Lenços verdes e uso dos próprios corpos como formas de resistência são ilustrativos de que não aceitamos “voltar atrás” e, para nós mulheres, tal qual a mais de meio século, em 1968, bradamos que “nosso corpo nos pertence” e “é proibido proibir”. Retroagir não é uma opção.