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01-06-2022        Público

O ex-presidente e provável futuro presidente do Brasil (Lula da Silva) conseguiu conciliar a sua hiperatividade de pré-campanha com o seu casamento com a socióloga Rosângela da Silva (Janja), um acontecimento relevante, a merecer a atenção dos media brasileiros (como até a garrafa de vinho Pêra Manca que lhe terá sido oferecida na véspera). Antes disso, foi capa da revista Time, mas aqui a exposição dever-se-á mais à informação privilegiada de que o grande jornalismo dispõe. Tendo em conta a simpatia do povo brasileiro para com casamentos entre homens de proveta idade e mulheres jovens, essa poderá até ser uma vantagem acrescida.

Tratando-se ainda por cima de uma “socióloga”, dir-se-á que Lula mostra a saudável abertura a novos saberes sociológicos, coisa que, aliás, pode bem dispensar. Consta-se que os dias no cárcere terão sido bem aproveitados com leituras aprofundadas que – sobretudo para uma perspicácia e inteligência intuitiva como a dele – lhe valerão tanto como um doutoramento, e sem a chatice de se submeter a exames; ao contrário do seu amigo José Sócrates que, pelos vistos, precisa de cumprir programas universitários no país de Lula para atualizar conhecimentos (ou será que a biblioteca da prisão de Évora é mais pobre do que a de Curitiba?).

Enfim, vem isto a propósito das afinidades e ligações entre Portugal/Europa e o Brasil, onde agora desenvolvo atividade académica, o que me proporciona transitar entre o velho continente e aquele país irmão. Há coincidências e episódios aparentemente irrelevantes, mas que, vistos à luz dessa ligação histórica e cultural tão longínqua e indelével – como a que subjaz ao vínculo pós-colonial entre países europeus e o Sul latino-americano – podem adquirir um significado mais profundo. Episódios como aqueles por que passei recentemente, podem ser ilustrativos do que acabo de referir. Imagine-se as duas situações abaixo descritas. A partir delas, desafio o leitor a adivinhar onde ocorreram (e, note-se, trata-se de situações reais, passadas comigo, em maio de 2022).

Primeira situação: uma viagem em autocarro privado, com poltrona e ar condicionado, numa viagem de cinco horas, onde deu para dormir larga parte do percurso, um autocarro com casa de banho e oferta de água. Devido a algumas surpresas que tive no passado, e tendo consciência da recente vaga de intensificação do tráfego aéreo, procuro sempre chegar cedo, ainda que tenha de aguardar horas no aeroporto.

Mais de quatro horas de viagem, com paragem para almoço pelo meio, sem pressas, os horários foram rigorosamente cumpridos, cheguei ao aeroporto à hora prevista, onde – dado o largo tempo de espera – me foi oferecido beneficiar do lounge da companhia aérea, em ambiente VIP, com amplo espaço e acesso a um buffet bastante completo, incluindo vinho e uma generosa diversidade de iguarias e menus gourmet. Nesta altura poderá o leitor ou a leitora imaginar qual o continente onde isto aconteceu. Resta acrescentar que, neste percurso, as temperaturas do ar oscilavam entre os 4 e os 12 graus centígrados. Ocorreu esta situação no Brasil ou na Alemanha? Já veremos.

Segunda situação: cenário contrário, o clima é de temperaturas a rondar os 27-30 graus centígrados. Tendo chegado cedo no aeroporto, a entrada no avião deu-se a um ritmo lento, o voo estava lotado, esperámos, já dentro do avião, meia-hora, 45 minutos, uma hora…, o ar condicionado a falhar; chegou então a informação de que houve uma avaria num computador de bordo e que o mesmo estaria a ser reparado, etc.

Meia hora mais tarde, o expectável aconteceu. Convidados a sair, a companhia aérea iria reencaminhar os passageiros para outro voo. No meio de um aeroporto apinhado de gente, mandam-nos para uma longa fila, a fim de sermos atendidos individualmente. Passado meia-hora surge um indivíduo com uma placa colorida, visivelmente apressado e a chamar por sinais os passageiros (pelo sotaque não deu para perceber a nacionalidade) para que o seguíssemos, ao que um grupo de vinte a trinta pessoas foi atrás dele, numa correria louca (qual “efeito manada”), para, enfim, nova fila, esta mais curta. No atendimento foi-nos oferecido um voo no dia seguinte (com conexão) e estadia no hotel próximo do aeroporto. A minha mala já tinha seguido no dia anterior: o espaço de tempo no aeroporto da conexão era de 20 minutos.

Finalmente junto ao portão de embarque, ficámos a saber que o voo estava atrasado precisamente os mesmos 20 minutos. Crescia o stress, confusão no atendimento, discussões entre passageiros (um deles visivelmente alcoolizado) e funcionárias da companhia numa agitação constante, ao fim de quase dois dias perdidos. Entretanto, a bagagem percorreu diversos aeroportos e só me foi entregue cinco dias depois. Onde é que isto aconteceu?

Bem, perante esta descrição, já quem me lê terá nesta altura imaginado qual das duas situações ocorreu no Brasil e qual delas ocorreu na Alemanha. Deixo para já em aberto a resposta. Recordando, entretanto, uma expressão em voga nos finais dos anos 1990 (Alain Lipietz e Ulrich Beck) quando se falou da “brasileirização do mundo” para sinalizar tendências, então no início, de crescimento da informalidade e da precariedade no trabalho no mundo ocidental, à semelhança do que desde sempre acontece no Brasil.

Na verdade, a degradação das condições de trabalho, a pobreza e as desigualdades estruturais constituem um padrão extremamente arreigado em países que carregaram, durante séculos, o fardo do colonialismo e sofreram profundamente os efeitos de uma lógica escravocrata que se entranhou e naturalizou através das sucessivas elites dominantes.

Mas o fenómeno expandiu-se, com relativa rapidez, ao continente europeu, onde a pandemia, o crescimento do trabalho em plataformas, as cadeias de distribuição digitais, a uberização, num mundo cada vez mais instável e em aceleração. A condição precária e vulnerável do trabalhador é exponenciada sobretudo no setor terciário, no comércio e serviços, ao lado de sistemas fabris ou trabalho agrícola intensivo, funcionando na sombra do Estado de direito.

Isto ocorre tanto na Índia e na América Latina como nos EUA ou na Europa, obedecendo ao chamado “metabolismo antissocial do capital”, onde as novas lógicas de consentimento subjetivado geraram uma espécie de “privilégio da servidão” (para usar aqui os conceitos do sociólogo Ricardo Antunes).

Multiplicam-se os “oásis” de exploração degradante, disseminados ao ritmo da contaminação viral da pandemia da covid-19 (situações bem conhecidas em Portugal). Entrámos na era do “capitalismo pandémico”, que promove hordas de servos e “infoproletários”, bem visível nos setores dos serviços e do turismo, e que se reflete na relativa desorganização e caos em que se encontram hoje as companhias aéreas, mesmo aquelas consideradas de referência.

Sim, o Brasil está na Europa em diferentes sentidos. E a Europa também está (continua) no Brasil noutros sentidos. Como sociólogo agora sediado deste país, alimento a ilusão de que um olhar cruzado entre os dois lados do Atlântico pode ajudar a desconstruir preconceitos e a repensar os efeitos perversos de uma influência – colonial e pós-colonial – de mais de 500 anos, cujas marcas se afiguram tão fortes que nem os 200 anos de independência que este ano se celebram conseguem apagar. É por isso que certamente muitos leitores terão pensado que a primeira situação descrita seria referente à Alemanha e a segunda ao Brasil. Não. Foi justamente o contrário.


 
 
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Elísio Estanque



 
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