Em tempos de guerras é instigante resgatar na literatura contemporânea as advertências contra o recrudescer da irracionalidade estrutural que corrói o nosso senso de humanidade. Não estou a referendar as conhecidas distopias modernas, como “Admirável Mundo Novo” (Aldous Huxley, 1932) ou “O homem do Castelo Alto” (Philip K. Dick, 1968), mas um pequeno conto de Jack London:“A mão de Midas”, publicado em 1901. Praticamente negligenciado pelo público e crítica, sem a sedutora estratégia de marketing da Netflix para o seriado espanhol de título homônimo, lançado em 2020, a supracitada narrativa de London continuaria restrita a poucos e diligentes leitores.
Se, explicitamente, o livro abarca os perigos decorrentes das lutas pelo poder, em que o seriado se mantém fiel, o mesmo não se pode dizer com relação ao alerta de London sobre a fragilidade da espécie humana em suplantar as alienações (éticas, etnico-raciais, de gêneros e de despossessão territorial) advindas das contradições do capital.
Um magnata das estradas de ferro, Eben Hale, é ameaçado de ser corresponsável pela morte de inocentes se não pagar a quantia de U$ 20 milhões aos “servos de Midas”. A comunicação, estabelecida por cartas, tem por objetivo a inserção do grupo na seletiva oligarquia das finanças. Para tanto, o que Hale drasticamente descobrirá, e que não importa quantas vidas serão eliminadas no processo, desde que a fruição do valor se mantenha. A mensagem é cruel: não são os inúmeros expatriados que contam, mas a redefinição dos limites de valorização do capital pelos limites de viabilidade da crescente massa de refugiados sociais.
Da ficção para realidade, tal como hienas, a oligarquia luta entre si pelos espólios (cada vez mais raros) da dinâmica do valor. As mais recentes personagens desta história macabra são os oligarcas russos. Sete, em menos de três meses, foram encontrados mortos. Todos vinculados a exploração de combustíveis fósseis. Segundo os laudos periciais, Vasily Melnikov e Serguei Protosenya cometeram suicídio, o primeiro após matar e esposa e seus dois filhos.
Aqui a linha tênue que separa o conto da realidade adquire um original matiz. London encerra a tragédia oligarca abruptamente com o seguinte aviso: a lei e a ordem, nas mãos dos oligarcas, falharam em seu intuito de garantir o progresso humano. O destino da humanidade está em outras mãos. Se estás em dúvida, caro leitor/ra, o próprio escritor californiano procura dissipá-la: “como meu último pedido, torne isso público. Não se assuste e, onde quer que as pessoas se encontrem, falem disso sem temor. E então, quando completamente despertada, que a sociedade se levante em seu poder e expulse essa abominação”. De uma vez!