O impacto da guerra de invasão imposta à Ucrânia, a que o governo de Putin tem associado ameaças veladas ou manifestas a diversos Estados do leste europeu e da região do Báltico, também contém algumas vantagens. Duas destas relacionam-se com a construção da resposta europeia à agressão russa e com algumas fraturas expostas ocorridas no campo plural da esquerda, ambas motivadoras de clarificações que podem ter alguma utilidade. Todavia, elas apenas serão efetivamente proveitosas se resistirem a unanimismos, de uma origem principalmente emotiva, que sugerem harmonia de interesses onde, na verdade, subsistem contradições e conflitos.
Com a guerra sobreveio o acordar europeu de uma letargia de décadas. A comissária Ursula von der Leyen acaba de lembrar que o continente se depara hoje “com as sombras de um passado que pensávamos ter deixado para trás há muito tempo: uma guerra atroz, uma agressão sem sentido, cidades destruídas e milhões de pessoas em fuga”. O panorama atual é, de facto, novidade em mais de sete décadas, projetando um drama que as guerras da ex-Jugoslávia, mais localizadas, não chegaram a suscitar. Ele comporta uma dimensão fortemente emotiva – associada à perceção de que uma Pax Europaea deixou de integrar a ordem natural das coisas – que está a perturbar cidadãos e responsáveis políticos, de repente despertos de um estado de sonambulismo. Análogo ao identificado pelo historiador Christopher Clark como tendo conduzido, por falta de discernimento entre os dirigentes da altura, à eclosão da guerra de 14-18.
A situação adveio de fatores diversos, a que não serão estranhos a deriva neoliberal que despojou a União Europeia da dimensão social, o recuo dos partidos e ideais progressistas e de esquerda que a poderiam ter contrariado, bem como a emergência de uma nova geração de dirigentes europeus que abandonaram o projeto federalista implícito na proposta do velho resistente Robert Schuman, trocando-o por políticas sem coesão ou rasgo. Já a dimensão de sonambulismo traduziu-se na demonstração de uma recorrente inconsciência perante a realidade geopolítica saída da derrocada da União Soviética. A Europa nada fez, no plano político, para se opor ao domínio mundial, por momentos único, dos Estados Unidos, fechando os olhos à recuperação económica, à expansão militar e à política externa imperial da Rússia e da China.
Renascida no atual contexto de guerra, a ideia da necessidade de coesão política e de iniciativa militar por parte da União Europeia parece definir uma consciência da necessidade de pôr fim a esse longo período de letargia e de definir uma estratégia própria.
Por outro lado, e é esta a sua segunda vantagem, a guerra de Putin determinou a necessidade de uma esquerda militantemente anti-imperialista e anticapitalista repensar a forma como encara o presente equilíbrio mundial. Explicando se mantém, como “inimigo principal”, os Estados Unidos, a União Europeia e a NATO, pactuando por omissão com as estratégias de potências agressivas concorrentes, como a Rússia ou a China, fundadas em sistemas tirânicos e associadas a regimes incompatíveis com a democracia representativa e com o respeito pelos direitos e liberdades fundamentais. Ou, contrariamente, assumindo ser em nome de bandeiras para si fundamentais que a sua iniciativa política passa também por enfrentá-las sem subterfúgios. Parte desta esquerda, perdida numa mundovisão datada que dificilmente mudará, tem provado não ser seu este combate. Mas por isto mesmo existe um claro desafio à ousadia do amplo setor aberto à complexidade do mundo contemporâneo e das suas causas.
Estas duas vantagens da guerra de Putin podem, porém, transformar-se em inconvenientes se se aceitar que o conflito presente se situa apenas no confronto entre o bloco democrático e o bloco autoritário, colocando entre parêntesis a luta travada na Europa contra o avanço da extrema-direita, dos populismos e dos nacionalismos, contra o racismo e a xenofobia, pelos direitos do trabalho, pelo equilíbrio ecológico, pela relação solidária com povos de outros continentes e com diferentes comunidades, inclusive aquela ligada ao dever do acolhimento de refugiados e migrantes. O combate da Europa contra a ameaça das tiranias deve impor, como cautela, o aprofundamento simultâneo da democracia e das políticas solidárias dentro dos Estados e das organizações internacionais, sem o qual se fecha a porta da frente escancarando a das traseiras. A escolha não pode, todavia, significar deixar de enfrentar quem em nome de um ideal imperial e tirânico esmaga nações inteiras e chacina os seus povos.