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17-03-2022        Campeão das Províncias

Para mim, é essencial a frase com que iniciamos uma conversa sobre a guerra a que a Ucrânia está a ser sujeita. E ela tem de consistir na condenação veemente dos crimes inomináveis de um Estado agressor, imperialista, violento e militarista, a Rússia de Putin. E deve ter como complemento a incondicional solidariedade para com o que sofrem esta invasão, por verem as suas cidades, as suas casas e as suas vidas roubadas. Tão importante como a primeira frase é a sua especificação, isto é, a natureza do poder russo, de todo o complexo militar, económico e ideológico que lhe dá substância. Incluindo aí a forma como subordina o próprio povo russo, as classes sujeitas à exploração, à alienação e uma representação falseada da vida contemporânea, destruindo uma cultura rica.

As frases seguintes podem ser sobre tudo o que nos ajuda a ver a história, as circunstâncias, os jogos de forças, as disputas de diversa ordem, enfim, a complexidade. Mas esta ordem do discurso, a hierarquia dos valores e das ideias, tudo isso, não pode ser depois relativizado ou alterado subtilmente. Há gerações, a minha e outras que lhe estão próximas, que colheram todos os benefícios do que, de melhor, o mundo nos pode dar. Dissemos isto de várias maneiras e falámos de conforto, educação, qualificações, democracia, cultura ou lazer. Admitamos que não nos teremos esquecido de incluir a paz em tal lista. Mas, provavelmente, não a teremos sublinhado tão devidamente como hoje sabemos que devemos sublinhar. Havia guerras. Mas todas as guerras eram longe e declarávamo-las quase exóticas, achávamos que eram primitivas ou supertecnológicas. Protegidos confortavelmente pela distância, nunca fomos capazes de nos ver dentro delas, não imaginámos a soleira da nossa porta coberta por estilhaços. A proximidade conta, tenho dito muitas vezes a outros propósitos. Agora sabemos que já vimos tudo o que nunca pensámos ver: uma pandemia que nos vulnerabilizou e deixou sob incerteza permanente, uma guerra que nos perturba violentamente. É urgente acabar com esta guerra. E também é urgente começar a pensar já na paz e no desarmamento.

O risco nuclear tornou-nos claro o que noutras alturas desleixámos. É preciso refundar a vida noutros princípios. Os económicos, pois fizemos tudo mal: intensidade energética extrema; intensidade produtiva sem olhar ao bem, só ao valor; ansiedade por nos “globalizarmos”, sem cuidar do lugar; prioridade à troca, distraídos da vida. Esta guerra vai, como noutros momentos maus, acelerar as desigualdades, fazer sofrer uns muito mais do que outros. É preciso bloquear este caminho. Contrapor-lhe, como se fez depois de outras guerras, um novo sentido da riqueza coletiva e do seu uso. Afirmar os princípios ambientais, claro está, para nos confrontarmos com a nossa insensatez mais surda. Mas há, tem de haver, uma nova chave para tudo isto, na economia, na vida quotidiana, na organização de cada país: desarmar o mundo, desarmar as potências, organizar a vida para lá de todas as corridas que terminam, inexoravelmente, na militarização, na construção de complexos económicos e tecnológicos geradores de desequilíbrios e instabilidade. Por entre dificuldades que se levantarão, importa, sobretudo, o sentido e a finalidade. Importa o modo como isso tem de impregnar todas as outras decisões. O mundo do século XXI, tão tragicamente marcado no seu primeiro quartel, tem de ser agora outro: pacífico, centrado na vida e nos lugares onde ela se cria e estabiliza, dirigido para a equidade, assente no bem que proporciona, não nas ansiedades que gera ou na sujeição do outro.

As utopias tornam-se muitas vezes realidades através das tragédias. Temos, pois, de encarar frontalmente esta tragédia e a malvadez que a desencadeou e, ao mesmo tempo, ousar realizar as utopias. 


 
 
pessoas
José Reis



 
temas
democracia    sociedade    utopias    Ucrânia    Rússia    guerra