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05-03-2022        As Beiras

A frase «a morte de uma pessoa é uma tragédia, a de milhões, uma estatística» tem sido identificada como da autoria de Estaline. Não existe prova documental de ter sido de facto este quem a pronunciou ou escreveu: poderá tê-lo sido ou não, seja nessa exata forma ou de um modo aproximado. Em todo o caso, a possibilidade dessa autoria e a contínua associação da expressão ao seu nome são profundamente coerentes com o comportamento violento e implacável que praticamente toda a historiografia hoje reconhece como próprio da personalidade do ditador georgiano e compatível com as escolhas políticas que tomou enquanto supremo dirigente máximo da antiga União Soviética. Está também em absoluta consonância com a aterradora pegada, setenta anos após a sua morte ainda não varrida, por ele deixada nos territórios que governou e no mundo em geral, onde conta ainda com admiradores.

Nesta se inclui a sombra dos acontecimentos do Holodomor, a «Grande Fome», que entre 1931 e 1933 devastou a Ucrânia, principal celeiro da União Soviética. Foi determinada por dois fatores dramaticamente coincidentes: o primeiro foi a coletivização forçada dos campos que eliminou a pequena propriedade, até aí a base de produção agrícola, expulsando os seus detentores (os ‘kulaks’), sendo o segundo as exigências desmedidas do 1º plano económico quinquenal (1928-1932), que definiu metas impossíveis de realizar, punindo com o degredo ou a morte quem as não cumprisse. Ao mesmo tempo, a perseguição pela NKVD, a impiedosa polícia política, de toda e qualquer contestação, levou o terror às cidades. Como resultado, estima-se que o volume de vítimas mortais tenha sido de 5 a 6 milhões de pessoas – número escasso segundo alguns historiadores – com muitas mais atingidas pela fome ou deslocadas à força para outras regiões.

Este sofrimento brutal dos ucranianos, por muitos interpretado como premeditado genocídio, forçou então a vinda de muitos russos para repovoar cidades ou trabalhar como migrantes em herdades coletivas, produzindo um impacto demográfico que o conflito em curso vem rememorar. Uma vez mais, o povo ucraniano – que durante a Segunda Guerra Mundial sofreu ainda o avanço direto das tropas de Hitler – é confrontado com a mais terrível devastação, agora pela via da guerra de invasão imposta por uma Rússia com objetivos imperiais. É neste contexto que Putin não vê problema algum em lançar uma iniciativa de destruição maciça, massacre e conquista sobre todo o território da Ucrânia, em particular sobre Kiev, cidade de 3 milhões de habitantes. Como, aliás, havia feito já em Grózni, a capital da Chechénia, e em Alepo, a maior cidade da Síria com 5 milhões de residentes, reduzidas pela aviação russa à total destruição física, com o extermínio de centenas de milhares de habitantes, a fuga forçada da larga maioria dos restantes e o reforço de ditaduras locais subordinadas a Moscovo.

Na altura, essas chacinas foram levadas a cabo em nome dos interesses russos na região. Realizadas com o aplauso dos mesmos aliados e apoiantes internacionais – alguns portugueses – que por nostalgia ou razões políticas se recusam agora a condenar Putin. Defendem mesmo o seu papel, por olhá-lo como herdeiro do antigo poder soviético e líder de uma resistência geoestratégica aos Estados Unidos, à União Europeia e à NATO. Este é um tratado militar opaco, passível de forte crítica ou de oposição no que respeita a diversas intervenções militares levadas a cabo, mas que jamais atuou com a dimensão de devastação e a completa rejeição mundial que detêm aquelas a ocorrer agora com as iniciativas de conquista do novo «czar». Para quem uma tragédia humana imensa se pode converter em mera estatística, sendo usada junto dos apoiantes e admiradores com objetivos políticos e imposta aos ucranianos como instrumento de opressão e extermínio.


 
 
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Rui Bebiano



 
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