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19-02-2022        Jornal de Notícias

Ao longo da história sempre se avançou na utilização de novas ferramentas e tecnologias, ou na aplicação prática de descobertas humanas, muitas vezes sem avaliação prévia das suas consequências. É, pois, natural que agora esse procedimento esteja presente na implementação do digital, da robotização, da inteligência artificial e dos diversos novos instrumentos e formas de trabalhar. Mas as condições da vida humana antigas e atuais têm profundas diferenças.

No passado os impactos daqueles avanços e aplicações eram muito de âmbito local. Isso gerava fronteiras, ou corta-fogos, possibilitadores de controlo e de medidas protetoras. Hoje, vai-se impondo uma organização da sociedade em que tudo tem de estar ligado com tudo, numa socialização tecnológica que desvaloriza a interação humana e as suas estruturas de intermediação, que fragmenta persistentemente, isolando e acantonando os indivíduos.

Uma sociedade sem barreiras de controlo será uma selvajaria. Tudo o que é passível de ser ligado em rede é propiciador de ataques que podem pôr em causa o nosso estilo de vida e a própria vida. A manipulação de um vírus num ataque informático mais simples, ou de um cocktail de vírus para um sofisticado ciberataque são crimes em si mesmo, mas são também espoletadores de outros crimes. Todavia, muitas entidades vítimas desses ataques apoderam-se, de forma indevida mas lucrativa, de dados dos cidadãos. Entretanto, há outros ataques que fazem parte das manipulações da geopolítica.

Existem poderes fátuos privados que não são responsabilizados ou responsabilizáveis perante a sociedade, mas impõem-lhe regras e comportamentos, em geral submetidos à pretensa superioridade das "leis do mercado". Enquanto poderes instituídos - desde o Estado às instituições internacionais - são achincalhados e convidados a desistir das suas funções e autoridade. Isto impede avanços na criação de mecanismos que travem o crescendo e a sofisticação de ciberataques.

A resposta aos problemas gerados pela comunicação digital, que tende a aumentar, bem como a utilização de tecnologias em geral, exige reflexão sobre como convocar e responsabilizar todas as instituições e organizações da sociedade e os diferentes atores. Compete aos estados e a poderes internacionais definir e articular estratégias, cuidar das capacitações estruturais e de sistemas de regulação, da definição de obrigações nos procedimentos, por forma a que as empresas não implementem sistemas insuficientemente preparados.

A Vodafone, empresa privada vítima de criminoso ciberataque que afetou a vida de milhões de portugueses, até podia ter um bom sistema de proteção, mas não clarificará o problema com que se deparou e a forma de se proteger para o futuro, sem ajuda de entidades e meios do Estado. Ainda menos com a afirmação meio heroica, meio patética, de que a empresa "estará sempre do lado do bem", "estaremos sempre do lado certo, esta é a força que nunca vão apagar". O direito a operar na sua área e à obtenção de significativos lucros impõe responsabilizações bem mais amplas.

Porque as tecnologias com que lidamos têm "um poder astronómico" é que se exige estudo sério de todos os seus impactos e que sejam postas ao serviço de todos os seres humanos. Urge refrear o voraz ímpeto da digitalização cega e do determinismo tecnológico e afirmar os saberes e a amplitude das dimensões da vida humana.


 
 
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Manuel Carvalho da Silva



 
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