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30-10-2021        As Beiras

Ao contrário do habitual, esta crónica inclui uma forte componente pessoal, partindo da posição adotada pelo Bloco de Esquerda ao rejeitar o Orçamento de Estado. Sei que o essencial do que vou referir, em especial a identificação de um sentimento de perda e de uma desilusão, está a ser partilhado por um bom número de homens e de mulheres que mantiveram as mesmas expectativas, agora perdidas ou em vias de o serem.

Nunca fui militante do Bloco. Em 1999, o ano da fundação, era apenas mais um daqueles milhares de cidadãos, politicamente empenhados desde os anos da ditadura e da revolução, então conhecidos como «independentes de esquerda». Foi nessa qualidade que participei em reuniões ligadas ao processo de formação do partido. Não me tornei militante porque de há muito compreendera não ter temperamento para a disciplina partidária, que tantas vezes impõe o silêncio da dúvida e da crítica, mas passei desde aí a colaborar com o novo partido, participando como «companheiro de jornada» em muitas das suas iniciativas.

Só em três momentos me distanciei inequivocamente das escolhas do Bloco. O primeiro teve lugar em 2011, quando, em conjunto com o PCP, fez cair o último governo de José Sócrates, abrindo caminho, como muitos então preveniram, para o deplorável governo de direita que nos governou até 2015. O segundo ocorreu quando das legislativas de há seis anos, única vez em que não votei no partido devido à sua recusa em dialogar uma eventual solução parlamentar com o PS e o PCP. Precisamente a solução que, após essa eleição, e como se nada antes se tivesse passado, acabou por aceitar, dessa forma ajudando a afastar a direita do poder. O terceiro momento aconteceu agora.

A proximidade do Bloco teve razões objetivas. Em primeiro lugar pela sua dimensão libertária e progressista, associada à defesa de causas sociais difíceis, para as quais são necessárias perspetiva e coragem. Em segundo, por representar uma alternativa ao Partido Socialista, instrumento essencial da nossa democracia, mas que se foi mostrando permissivo ao universo dos interesses e da gestão neoliberal. Em terceiro, pela distância do PCP, partido historicamente respeitável e socialmente necessário, mas que, em nome do dogma, apoia ditaduras e mantém uma moral conservadora. Em quarto, pelo empenho efetivo na defesa dos trabalhadores e das minorias, apesar da sua base social estar na classe média urbana e na juventude. Por último, por mobilizar tantas pessoas com sentido de justiça e solidariedade, de muitas das quais já era ou me tornei amigo.

As divergências também sucederam. Algumas de natureza estratégica e tática, associadas à ausência de um projeto de governo e à menorização da mobilização no terreno, trocadas pela atuação quase exclusiva no teatro parlamentar. Outras relacionaram-se com a falta de uma política consistente para a Europa ou com posições ambíguas no campo internacional. Nada, porém, tão grave quanto o que aconteceu agora, quando, repetindo o episódio de 2011, em nome de reivindicações justas, mas não dramáticas, e depreciando na prática avanços sociais que o Orçamento previa, o partido tomou o PS como inimigo principal, condenando o país a eleições que, em fase de recuperação económica e de superação da crise pandémica, poderão trazer a direita de novo para o governo.

Isto tomo como certo: existia um capital de cumplicidade e confiança orientado à esquerda, partilhado por uma maioria de cidadãos, que por iniciativa intempestiva do Bloco e do PCP – associada a uma rigidez do Partido Socialista – se evaporou e nos tempos mais próximos dificilmente será resgatado. Ocorrerão agora manifestações de demagogia e rancor, além de fortes transferências no sentido do voto, sendo o Bloco de longe o principal lesado. Aqui reside a razão primeira dessa dor partilhada que referi no título. Acompanho-a de um enorme desapontamento.


 
 
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Rui Bebiano