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07-11-2021        Público

Os “outros” que o prefixo “afro” tenta designar somos “nós”, uma Europa a precisar de ser abanada das suas velhas certezas.

A redefinição da cultura europeia é um contínuo. Mas existem momentos em que essas dinâmicas de transformação se inscrevem de forma mais visível na realidade. Estamos a viver um desses períodos. Os lugares de enunciação têm vindo a modificar-se. Em parte, esse processo desencadeou-se quando filhos e netos das gerações que viveram os processos de descolonização começaram a questionar os ditos, e não ditos, sobre o colonialismo e pós-colonialismo. Em casa, confrontavam-se com a memória de experiências, muitas delas violentas e traumáticas, de familiares. Na escola, para passar de ano, eram obrigados a aprender as narrativas oficiais que denegavam o que lhes era transmitido em casa.

Nunca é fácil pormo-nos em causa, individual ou colectivamente. Mas hoje existe um número crescente de pessoas disponível para interrogar legados coloniais, introduzindo-lhes outras camadas de conhecimento, abrindo brechas por entre a invisibilidade ou as narrativas idealizadas ainda predominantes. Para essa desconstrução tem contribuído a produção de obras de artistas, músicos, escritores, cineastas, encenadores e outros agentes, muitos deles pertencentes à segunda e terceira gerações afrodescendentes, cuja trajectória familiar, e dos países onde nasceram ou residem, reflectem novas leituras e experiências, no âmbito de uma Europa embrulhada em muitos impasses socioeconómicos e culturais que tarda em transcender.

Esta semana, na Culturgest, em Lisboa, durante um dos colóquios de apresentação do projecto de investigação Memoirs, que está a estudar o impacto das heranças coloniais na memória colectiva de Portugal, França e Bélgica, alguém dizia que haverá um tempo em que não será preciso utilizar o prefixo “afro” antes de outra palavra, para enquadrar uma realidade em mutação, ou que, pelo menos, ainda não é perceptível para uma larga maioria. Ou seja, a linguagem ainda não é inclusiva, sendo enunciadora de diferenciação — daí tantos conflitos na actualidade à sua volta —, mas os “outros” que são designados já são apenas um “nós”.

Se o mundo da cultura e das artes é reflexo presente e prenuncio futuro, as obras de Francisco Vidal, Grada Kilomba, Dino d’ Santiago, Teatro Griot, Kiluanji Kia Henda, Gisela Casimiro, DJ Nídia, Tristany, e tantos outros, no caso do contexto português, são exemplos de reinterpretação, questionamento e revisão de uma herança cultural que a todos já diz respeito, independentemente da presença ou não de vivências biográficas africanas. Através das suas obras contrariam não só a amnésia das consequências do colonialismo, mas também a desvalorização das narrativas e produção histórica relativas aos territórios colonizados.

Em simultâneo, em contracorrente aos nacionalismos em ascensão, renunciam a todos os emolduramentos artísticos (como o de “artista africano”) porque existe nas suas obras uma dimensão plural que vai além do território ou nação. Com todas as suas heranças complexas contribuem para o cosmopolitismo europeu, introduzindo novos modos de ser e sentir, alguns difíceis de apreender no todo, porque em construção. Por um lado, “africanizam” a Europa, por outro, libertam-se da marca colonialista que os enquadra negativamente como “africanos”, para se afirmarem como europeus de pleno direito. Acabam por introduzir uma saudável desarrumação num continente a precisar de ser abanado das suas velhas certezas. Claro que, em simultâneo, à sua cada vez maior afirmação, pela criação de um espaço tão inovador quanto urgente, também se vão criando novas resistências e incompreensões. Mas a dinâmica encetada parece imparável.


 
 
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