No começo do verão de 1971, para um rapaz de 17 anos, entusiasta da música moderna transmitida pelo programa «Em Órbita» e dos horizontes mais livres que ela deixava imaginar, mas confinado à pacatez e à repetição dos dias numa pequena vila do interior do tempo da ditadura, a hipótese de ir a um festival para jovens levantava alguns problemas, mas era um desafio irrecusável. Precisava programar a ida até uma região desconhecida, e também de ajustar uma desculpa para a saída que impedisse os pais de suspeitar das suas intenções. O que se esperava acontecer, todavia, lembrava-lhe de tal forma os épicos eventos de Woodstock, em agosto de 1969, e da ilha de Wight, no ano seguinte, que não podia ignorar o desafio.
A jornada de mais de 300 quilómetros era a primeira motivação. Para a cultura juvenil internacional dos anos sessenta, mas em especial dentro de sociedades fechadas como a portuguesa, onde as autoridades estimulavam o imobilismo, a viagem funcionava como momento instaurador de um processo de emancipação perante a prisão representada pelo pequeno mundo e, no contexto da época, muitos dos que se deslocaram até Vilar de Mouros tinham essa perceção. A minha viagem concreta foi a soma de uma dezena de etapas realizadas integralmente à boleia, a última vivida numa camioneta de caixa aberta de uma empresa de suinicultura, onde uma dezena de rapazes e de raparigas coabitou, entre gargalhadas e solavancos, com meia dúzia de porcos.
A edição do festival de Vilar de Mouros, que decorreu a 7 e 8 de agosto de 1971 sob o lema «cultura e juventude ao alcance de todos», funcionou como momento no qual, no plano simbólico e físico, essa tensão entre imobilismo e viagem pôde ganhar forma. Como escreveu o Diário Popular em reportagem então publicada, «uma aldeia pitoresca e pobre à beira Coura transformou-se em símbolo»; já o semanário Século Ilustrado falava de «um mundo novo que se parecia abater sobre Caminha e a povoação de Vilar de Mouros». Os mil habitantes da aldeia, quase todos vivendo do campo e habituados ao sossego do mundo rural, viam repentinamente chegar mais de 20 milhares – a estimativa mais plausível – de «jovens estranhos, muito estranhos», nas palavras de um deles, que pagavam para entrar na área do festival «o equivalente a quatro dias de trabalho, com a enxada, de um natural da aldeia».
A maior parte eram teenagers «de cabelos compridos e vestes esquisitas», vinda pelos mais diversos meios. Exibia também, de acordo com o diário conservador Época, «uma liberdade amorosa que hoje, infelizmente, se nota por toda a parte», dando à paisagem humana um colorido fora do comum. Junto fragmentos da memória: dormir ao relento, no chão e em grupo de rapazes e raparigas, uma higiene menos que básica feita no rio, comer o que calhava e quando calhava, beber cerveja morna, apanhar calor e engolir poeira, esperar tempos infinitos por cada concerto, com atrasos monumentais e a incerteza sobre a chegada dos músicos. E viver tudo isto como uma experiência de libertação.
A relativa apatia do público, notada pelos músicos estrangeiros convidados que a compararam com o habitual em iniciativas onde haviam participado, parecia algo estranha, mas testemunhava, como escreveu Fernando Zamith no seu livro-álbum sobre o festival, «a inexperiência de quem não sabe reagir perante um acontecimento novo e diferente». Num país habituado à censura e à vigilância dos costumes, e treinado na moderação, onde até os bailes de finalistas e inocentes espetáculos festivos eram objeto de interditos, «estar ali» parecia, sobretudo para os mais jovens, e mesmo tendo em conta a frágil qualidade do programa, suficientemente compensador. Além disso, a aprendizagem da festa, até ali limitada aos privilegiados que a podiam obter além-fronteiras, começava ali a democratizar-se.
Situação análoga ocorreria meses depois, em novembro, quando do I Festival de Jazz de Cascais, onde atuaram músicos como Miles Davis, Thelonious Monk, Dizzie Gillespie, Ornette Coleman ou Charlie Haden, este detido, interrogado e expulso do país pela PIDE após ter em palco dedicado um tema sobre Che Guevara aos movimentos de libertação das colónias portuguesas. O Cascais-Jazz foi também um momento iniciático, experimentado em suspenso, de relação única com uma vivência cultural para a maioria até ali apenas conhecida dos discos, do cinema, das revistas estrangeiras e dos suplementos de alguns jornais, ou que inteiramente desconhecia. A coincidência de muitas presenças em ambos os festivais, tão diversos no formato e no género musical, indiciava uma sede de novidade e de participação que integrava a vivência portuguesa pré-revolucionária.
Em Vilar de Mouros, como em Cascais, foram ampliadas as condições para a rápida aproximação a uma cultura internacional democrática e libertária que oferecia outros modos de ler o mundo e de nele habitar, que disseminava experiências de autonomia individual e de grupo, particularmente entre uma juventude que pela mesma altura, sobretudo nos meios estudantis, se organizava também na crítica e na contestação do regime que ruiria menos de três anos depois. Naquele agosto de 1971, nas margens do Coura, como escreveu mais tarde um jornalista da Flama que lá esteve, «o pessoal (…) dormiu espojado para as estrelas, curou a ressaca, lavou-se no rio e es