A escritora angolana e portuguesa Yara Monteiro afirma que foi no Brasil que se descobriu “negra”. Porém, o seu romance “Essa dama bate bué” retrata com uma sensibilidade inigualável as dores e as lutas das mulheres angolanas. Nas Áfricas, as mulheres, sendo negras, não usam este adjetivo na caracterização do seu “lugar de fala”, pois é o lugar da opressão pelos homens negros e por elites negras. A despeito da afirmação de negritude das literaturas africanas durante a luta anticolonial, é a partir dos movimentos negros brasileiros que se cria uma consciência afrodescendente, hoje, em Portugal, junto com a redescoberta da herança africana.
Mário Lúcio, escritor e músico africano e negro, ex-ministro da cultura de Cabo Verde, exprime na literatura e na música este “matrimónio” que é o oceano Atlântico, e num “Manifesto a Crioulização”, que longe de defender uma camuflagem do racismo sob a falsa retórica da “democracia racial”, configura uma utopia de igualdade em que o reconhecimento da mistura identitária em cada indivíduo pode unir a humanidade que o racismo segrega.
Não sou negra. Sou mãe de duas meninas negras portuguesas, filhas de um africano, com enormes problemas de identidade numa sociedade em que só agora o racismo entra no debate público, depois de séculos de colonialismo, de uma guerra colonial, de uma ditadura, e com a ascensão da extrema-direita na Europa. Ensinaram-nos, nos livros de História, que negros eram produto de venda para o Brasil, mas não que muitos viviam em Portugal desde muito antes, que cidades como Lisboa eram tão negras como brancas. A invisibilidade negra começa na Idade Média, quando se incorpora a alteridade árabe e muçulmana numa homogeneidade branca e cristã. Com a descolonização, em 1975, os chamados “retornados” negros de África são remetidos para comunidades marginalizadas em Lisboa, sendo o isolamento a experiência maior das pessoas negras que vivem no resto do país. A imigração nas décadas seguintes completa um quadro de racismo e exploração.
Ainda assim, a vivência das pessoas negras mesmo num país tão pequeno, é extremamente diversa e dificilmente comparável com a da grande e também heterogénea população negra no Brasil. Porém, as aprendizagens recíprocas são importantíssimas para construirmos a unidade na diversidade, combatendo o racismo institucional e quotidiano. A revisão da História e da memória será feita nestas circulações, que marcam a diversidade de lugares de fala sempre híbridos, mas que lutam juntos contra opressões comuns. A nossa ética: a aprendizagem permanente.
Como mãe (branca) de meninas (negras) alinho-me na revolução das parideiras, que aprendi com a poeta Dinha, da periferia da Parque Bristol, em São Paulo. Não sei o que é a dor de ver um filho cair morto por ser negro sob a violência assassina dos braços armados do Estado. Amor de mãe, conheço. O racismo reconheço e combato, pelas minhas filhas. Isto é o que nos une, mão na mão, através do oceano.