Michel Foucault caracterizou a biopolítica enquanto dispositivo de poder, surgido no século XVIII, e que diz respeito a uma série de regulações e intervenções centradas na população, incluindo dimensões como a longevidade, nascimentos e saúde. De acordo com Nikolas Rose, nas democracias liberais avançadas os cidadãos tornam-se responsáveis pela internalização dos imperativos biopolíticos, transformando a “saúde” num mecanismo de poder associado ao controlo político e a mecanismos individuais de auto-regulação.
A pandemia de covid-19 é particularmente emblemática para ilustrar a hegemonia da biopolítica. Mecanismos como as quarentenas, o distanciamento físico e práticas como a constante lavagem das mãos ou a utilização de máscara ilustram a forma como os cidadãos têm vindo a reconfigurar os seus comportamentos com vista à regulação da saúde individual e colectiva. A campanha de vacinação em curso tem-se manifestado numa redução da mortalidade associada à covid-19 e, em Abril de 2021, o ministro da Educação fez um apelo à confiança nas vacinas, considerando a inoculação um dever cívico e um gesto altruísta.
O recém-criado Certificado Digital Covid tem como objectivo facilitar a circulação na União Europeia durante o contexto pandémico, permitindo aos indivíduos ter “liberdade de movimento” caso se incluam na condição de vacinados, recuperados de covid-19 ou se obtiverem um teste negativo. A indexação da liberdade de circulação ao estatuto biopolítico de cada cidadão é altamente problemática do ponto de vista ético, social e político, e é urgente um debate público para evitar uma normalização de decisões políticas de tipo top/down, “naturalizadas” por se assumirem enquanto garante da saúde das populações.
Em primeiro lugar, este certificado é digital, o que poderá marginalizar populações info-excluídas e/ou menos familiarizadas com os dispositivos tecnológicos; em segundo lugar, o certificado pode ser interpretado enquanto dispositivo de controlo social, estigmatizando cidadãos que, pelos mais diversos motivos (religiosos, ideológicos ou até políticos), recusam a vacinação, sendo sujeitos a testes constantes; em terceiro lugar, nada garante que este certificado seja uma medida temporária ou “excepcional” – o constante surgimento de novas variantes pode eventualmente prolongar o estado pandémico, tornando “permanentes” tais dispositivos digitais; em quarto lugar, há a possibilidade de que estes certificados se tornem obrigatórios para assistir a concertos, entrar em restaurantes ou aceder a certos serviços; finalmente, existem riscos associados à protecção e eventual utilização (e comercialização) de dados dos cidadãos.
O potencial apartheid biopolítico gerado pelos certificados digitais pode configurar uma perigosa injunção sociopolítica que articula formas de controlo governamental, biológico e tecnológico. O aparente consenso social e político em torno destes processos deve ser questionado de forma veemente e robusta. A crise pandémica não pode justificar a emergência de uma nova arquitectura de controlo tecno e biopolítico em nome da saúde da população, correndo-se o risco de gerar novas desigualdades sociais e os direitos, liberdades e garantias serem potencialmente condicionados por novas formas de poder.