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26-06-2021        As Beiras

A banalidade é a expressão acabada da insignificância, bem como da incapacidade para contrariar a repetição e produzir o novo. É irmã do conformismo, essa tendência para a passividade e a resignação que exclui a coragem de discordar ou resistir. Quem cultiva a banalidade não desenvolve a capacidade humana para pensar de forma autónoma e com audácia, alimentando as formas de autoritarismo e de ordem injusta. Provavelmente pela primeira vez no curso da história, atualmente fama e reconhecimento tendem a tomar como modelo – destacado em capas das revistas ou concursos televisivos – não as figuras singulares, capazes de gestos de rasgo pautados pela inteligência, pelo sentido crítico e pela coragem, mas justamente personalidades banais, destacadas porque o cidadão anónimo, que os populismos têm vindo a empoderar como alicerce do sistema político, nelas se revê. Por isto passarei a ter nestas crónicas, como tema ocasional, a evocação de personalidades cuja vida e exemplo se levantaram contra a banalidade.

Apesar do papel que teve na atividade artística e intelectual, sobretudo como atriz e encenadora, da Letónia onde nasceu, da Rússia da fase mais fértil e épica da revolução bolchevique e da República alemã de Weimar, Anna Ernestova, conhecida como Asja Lacis (1891-1979), não deixou o nome registado em vultuosas bibliografias e em placas toponímicas. Profissão: revolucionária, uma autobiografia publicada em 1971 na Alemanha Federal (saída na União Soviética apenas em 1984), as memórias da sua filha Dagmāra e um punhado de artigos são tudo o que é possível encontrar da longa e movimentada vida que teve de militante, artista e mulher capaz de acordar grandes paixões. 

Cheguei a ela por dois acasos. O primeiro aconteceu quando procurava informação sobre a literatura criada no Gulag, o sistema concentracionário expandido na União Soviética: descobri que fora prisioneira por dez anos num campo da Sibéria, contados a partir de 1937, o ano da Grande Purga de Estaline, mas Asja omitiu a experiência, suspendendo a narrativa autobiográfica em 1931, quando vivia em Odessa, e retomando-a apenas em 1948, na altura em que se instalou em Walmiera, na Letónia. O segundo acaso, mais recente, ocorreu durante a leitura de uma biografia de Walter Benjamin, que Asja conheceu na ilha de Capri e com quem manteve uma ligação amorosa, feita tanto de encontros breves e intensos, quanto de desencontros mais ou menos inevitáveis. Seguindo-lhe a pista, pude perceber como ambos os factos confluíam, no contexto de uma vida tumultuosa, numa personalidade complexa que, todavia, jamais questionou publicamente a adesão precoce à causa comunista, no sentido assumido pelos que nesta reconhecem a materialização de um grande ideal de justiça, liberdade e progresso. Terá sido esta que a fez suportar o degredo, encobrir a memória da perseguição e do sofrimento, e continuar a acreditar que nem tudo estava perdido. 

Foi também essa convicção que a levou a incentivar a aproximação de Benjamin ao marxismo. Mas ao mesmo tempo, e com maior dose de certeza, foi ela também a afastá-la, na prática, do seu amigo filósofo alemão, logo que a sua atividade considerada «cosmopolita» começou a ser seguida pelos esbirros do NKVD e passou a ver proibidas as suas deslocações, bem como os livros e os jornais que gostaria de receber. Quis saber novidades de Walter – que em 1928 lhe dedicara EinbahnstraßeRua de Sentido Único, para ele «Rua Asja Lacis, em homenagem àquela que como um engenheiro a abriu no corpo do autor deste livro» – através de Bertolt Brecht, quando em 1955 este visitou Moscovo para receber o Prémio Lenine da Paz, sem suspeitar que para não ser capturado e assassinado pelos nazis Benjamin se suicidara quinze anos antes. Asja permaneceu ativa até ao fim.


 
 
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Rui Bebiano



 
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