Sempre que um discurso é produzido, há um conjunto de escolhas envolvidas, que podem ser mais ou menos conscientes. A linguagem usada, o ponto de vista do argumento ou o que cabe ou fica fora do enunciado resultam de opções que tornam a neutralidade discursiva uma meta sempre por atingir.
O lugar de onde o interlocutor fala, isto é, a posição que o sujeito ocupa em sociedades fortemente marcadas por desigualdades de poder, influencia essas escolhas. As convicções ideológicas também. Mais importante do que a fantasia da neutralidade é situar os discursos.
Por isso, quando lemos uma noticia ou um texto de opinião, tão importante como perceber se são verdadeiros ou falsos os factos narrados é fazer perguntas sobre o que não é expresso: foi pensado a partir de que lugar? O que ficou fora do discurso? Que relações de poder são silenciadas?
A escrita deste texto, por exemplo, envolve opções, que realizo a partir do meu lugar, das minhas experiências, das minhas convicções: sou mulher, sou socióloga, sou doutorada, sou investigadora, sou docente universitária, sou trabalhadora precária, já senti na pele o privilégio e a opressão, sou de esquerda, sou feminista, sou antirracista com muito para aprender.
Fazer estas afirmações não é paroquializar a escrita, mas assumir de onde vem e o que a sustenta. Se alguém afirma não ver outros caminhos, não significa que não existam, mas que não são observáveis a partir do lugar em que o discurso é formulado. A austeridade imposta na Europa depois de 2010 foi justificada pela inexistência de alternativas. “Dentro do capitalismo neoliberal” é o que ficou quase sempre por dizer.
Quando a ideologia é hegemónica, as desigualdades de poder que sustenta são naturalizadas ou tornadas invisíveis. O uso do masculino universal para falar de justiça social invisibiliza as desigualdades de género. Dizer que todas as vidas importam é uma verdade que oculta que alguns corpos são reiteradamente desumanizados e precisam muito mais de proteção do que outros.
Falar de empreendedorismo, resiliência ou igualdade formal individualiza o (in)sucesso, divide para reinar, e mascara as imensas injustiças sociais que alicerçam o capitalismo neoliberal. Os problemas não são individuais, são parte do sistema e só se superam com luta coletiva e mudanças estruturais.
Reivindicar mais diversidade nos debates públicos não é defender a inclusão numa ordem inalterável, mas o alargamento dos lugares de enunciação e, assim, das possibilidades de refletirmos coletivamente sobre o presente e o futuro. É por isso que os movimentos sociais não se defendem apenas a si próprios. Ouvir mais as mulheres, as pessoas racializadas ou os/as trabalhadores/as precários/as é ampliar coletivamente o horizonte da imaginação política.
Afirmar que extrema direita e esquerda radical se equivalem é brutalmente desonesto. Desumanizar categorias de pessoas e silenciar vozes é completamente diferente de reivindicar a interpretação do mundo e das alternativas a partir de mais e mais diversos lugares. Diz um conhecido ditado africano que enquanto os leões não tiverem os seus próprios historiadores, a historia da caça glorificará os caçadores. E a própria caça, podemos acrescentar.