Como é sabido, o movimento #metoo teve início nos Estados Unidos durante o ano de 2017, adquirindo uma dimensão internacional que agora chega abertamente a Portugal. Surgiu como uma iniciativa de denúncia individual lançada contra o assédio e o abuso sexual sobre mulheres em regra exercidos por homens colocados numa posição de poder que facilitou a coerção e a chantagem. Sob estas condições, teve à partida um objetivo mais do que legítimo: o de resgatar muitas mulheres assediadas ou abusadas, condenadas também a longos anos de silêncio, de trauma e de um sofrimento visível ou invisível. O que poderia ser mais justo? Todavia, o movimento apenas tem um verdadeiro impacto em sociedades onde a subalternização das mulheres já não se encontra condicionada pela lei civil ou religiosa, ou onde uma efetiva liberdade da palavra pode ampliar o impacto da denúncia e da voz que denuncia. É justamente este o motivo pelo qual, sob o tópico #metoo, as redes sociais têm cumprido um papel decisivo para fazer chegar junto da opinião pública, e também junto de outras mulheres em idêntica situação, os fortes testemunhos que lhe dão forma.
Contudo, é também por ocorrer neste espaço de desmesurada abertura e exposição que o movimento, bem como a sede de “justiça justa” que o motiva, precisa ser levado a cabo com responsabilidade. De outra forma, poderá acabar por causar danos de diversa natureza, tanto em quem denuncia, como em quem é objeto da denúncia. São três os fatores que podem materializar este perigo: em primeiro lugar, o facto de muitas acusações serem fundadas em meras alegações, em regra não suscetíveis de outra “prova” além da palavra de quem acusa; em segundo, o basearem-se muitas vezes em factos ocorridos a uma grande distância temporal, dificultando particularmente, ou mesmo impossibilitando, o apuramento da verdade; e em terceiro lugar, o reportarem-se em muitas situações a um tempo da vida pessoal e coletiva no qual determinadas atitudes não detinham a dimensão, nem lhes era atribuído o sentido, que pela transformação das práticas sociais e dos direitos políticos, assim como dos códigos éticos e jurídicos, lhes são hoje atribuídos.
Nestas condições, uma denúncia justa, ou levada a cabo para requerer justiça, não só raramente o consegue fazer de uma forma completa, como – assim acontece nos Estados de direito, felizmente, com todos os crimes que não podem ser provados – ficará sempre por levar até ao fim, muito raramente podendo ser traduzida em pena. Fica então, como resultado, essencialmente o gesto de denúncia, o seu eco, o modo como o episódio e as pessoas envolvidas passam a ser socialmente consideradas. Sob esta perspetiva, a justiça do #metoo quase sempre se vê limitada pela ausência de elementos de prova, ao mesmo tempo que pode excluir a presunção de inocência e conduz à penalização de quem é acusado, seja culpado ou inocente, através de um opróbrio público inapelável e irreversível. Marcando para sempre o futuro, mas também o passado, a vida, a obra, até a família e os amigos, de quem é julgado na praça pública sem direito a outra defesa que não seja a da sua palavra contra a palavra de quem acusa. Ou a da sua imagem pública contra a imagem pública da outra pessoa.
Existem ainda duas outras dimensões que transformam este movimento, inicialmente projetado como uma demanda de justiça, num lugar que pode ser também de involuntária injustiça. A primeira respeita a uma complexidade do humano, da qual constam elementos de natureza subjetiva como a vingança, o despeito, a mentira, o esquecimento, a paranoia, a mutabilidade na forma de construir ou de invocar a memória, bem como a de interpretar ou de contextualizar o passado. A segunda dimensão prende-se com o facto, particularmente notório no campo da vivência e da história das masculinidades, de determinados comportamentos, hoje inteiramente inaceitáveis, terem feito parte, durante boa parte da sua vida, da educação e da vivência “normalizada” da sua sexualidade por parte de muitos dos acusados. Aqui, a fronteira entre a condição de assediador de homem de ontem e do de hoje pode muitas vezes ser profunda, requerendo o cuidado de tudo colocar sob perspetiva histórica.
Quanto aos verdadeiros criminosos – os violadores, aqueles que forçam e condicionam as mulheres, oprimindo-as e humilhando-as no passado ou no presente –, esses não podem deixar de ser denunciados e, se possível, de ser também condenados. Para que o seu péssimo exemplo não frutifique ou permaneça normalizado e impune. Sem sombra de dúvida. Mas sempre com provas credíveis e irrefutáveis, não com palavras escritas em dazibao – os grandes cartazes afixados em lugares públicos na China da Revolução Cultural para denunciar, sem direito a contraditório, todos os suspeitos de não seguirem “a linha justa do Presidente Mao” – colocados, sem apelo nem agravo, nas redes sociais. Assim fazendo pagar, através de julgamentos fora do tribunal e de lapidações na praça pública, tanto o criminoso quanto o inocente. Existem muitas formas de neste campo minado lutar consequentemente pela justiça, mesmo por uma justiça retroativa, mas nenhuma delas pode levar a uma injustiça maior.