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15-04-2021        Público

O processo Operação Marquês destinava-se a ser o processo que iria testar os alicerces do Estado de direito e em que a justiça mais arriscaria a sua legitimidade social e política. Exigia-se, por isso, que o poder político e o poder judicial compreendessem que todos os holofotes (benignos, malignos, construtivos, destrutivos do Estado de direito) iriam incidir sobre ele. Lamentavelmente, não compreenderam. E assim explodem com estrondo muitas das fragilidades do funcionamento da justiça e da sociedade. Num momento em que forças da extrema-direita, ou por esta arrastadas, pretendem criar um ambiente de pânico moral e institucional conducente a uma crise política, é imperioso que nos interroguemos serenamente e nos mobilizemos democraticamente em redor dos temas fundamentais.

O primeiro é que as ineficiências e as perplexidades da ação da justiça não podem colocar em causa pilares fundamentais do Estado de direito, como a independência e a autonomia dos juízes. Em democracia, as decisões dos tribunais, além da avaliação pela via do recurso, devem ser criticamente escrutinadas pela sociedade no seu conjunto. Mas são totalmente inaceitáveis abaixo-assinados e outras atitudes persecutórias contra juízes por tomarem decisões que não agradam a determinados grupos. Os juízes de instrução têm um papel de enorme relevância na salvaguarda de direitos, liberdades e garantias. E, todos os dias, nos tribunais portugueses, esses juízes tomam decisões que contrariam despachos e requerimentos do Ministério Público. Muitas delas, designadamente em criminalidade económica grave, já ditaram o fim de muitas acusações. E nunca, como agora, tal clamor persecutório se levantou. O que se procura é enfraquecer a democracia e descredibilizar a justiça. E o poder judicial tem obrigação de rejeitar inequivocamente a ideia de que deve ser “justiceiro” em determinado caso concreto.

O segundo tema é o de que as debilidades sistémicas, patentes neste caso, não podem ser resolvidas por via da “fulanização” da justiça. Há muito que está instalada na opinião pública a perceção de bipolaridade do Tribunal Central de Instrução Criminal, com dois juízes com leituras do seu papel na instrução criminal diametralmente opostas: um em quase permanente conflito com o Ministério Público e outro muito próximo deste. Essa perceção é corrosiva do Estado de direito, com os cidadãos a encararem a ida dos processos a este tribunal como uma espécie de lotaria. Os órgãos de governo do judiciário têm a obrigação de estar atentos a estes fenómenos, que não são inéditos nos nossos tribunais, e encontrar soluções organizacionais. Tais soluções, além de terem respaldo legal e constitucional, devem ser democraticamente escrutináveis. Em caso algum podem permitir a suspeição de que são feitas em função do “estilo” de determinado juiz.

O terceiro tema diz respeito à relação entre hipermediatização da justiça e confiança social. Na Operação Marquês, a mediatização da justiça atingiu níveis nunca antes alcançados. Desde a detenção do ex-primeiro-ministro, quase transmitida em direto pelas televisões, até às constantes violações do segredo de justiça e do direito à presunção da inocência, todo o processo se foi desenrolando na praça pública e aí foi julgado. Se a mobilização mediática permite a instrumentalização da opinião pública, também coloca a justiça sob maior escrutínio e pressão. E se esta continuar a conviver com a ideia de que pode promover ou aceitar a mediatização para disfarçar fracassos, ineficiências ou despreparos, será alvo fácil de instrumentalização por parte dos poderosos grupos que dominam a comunicação social.

O quarto tema diz respeito a uma “velha” fragilidade do funcionamento da justiça, a ineficácia da ação do Ministério Público. Há muito que se discute entre nós a qualidade, a robustez e a eficiência das acusações nos processos de criminalidade económica complexa. Evidenciam-se sobretudo três problemas: a deficiente articulação entre polícias e Ministério Público; falta de formação específica: a colocação dos atores judiciais nesses organismos deve ser precedida de formação especializada, como a formação inicial não foi orientada para estes casos, a formação contínua deve ser obrigatória; falta de visão estratégica da investigação, o que permite a insistência em megaprocessos e provas de baixa robustez ou de “arrasto”.

Apesar de estes problemas serem reconhecidos e de serem proclamadas orientações para os resolver, aí está, diante dos nossos olhos, o mesmo padrão de investigação, com a criação de megaprocessos, provas frágeis, nulas, na sede de tudo acusar e julgar. A Procuradoria-Geral da República tem de impor todas as mudanças organizacionais necessárias para que se crie um padrão de eficiência e de eficácia na investigação a este tipo de criminalidade, de modo a que, em prazos razoáveis, haja arquivamento ou acusação sólida e fundamentada. Aliás, é importante lembrar que o Ministério Público tem experiência de sucesso, com a constituição de equipas fortes, capazes de imprimir uma grande dinâmica, coesão, celeridade e eficácia à investigação.

O quinto tema, também ele “velho”, é a morosidade judicial. É dramático percebermos que o sistema de justiça e, em particular, o Ministério Público, tenha endogeneizado a morosidade e a ineficiência e conviva bem com ela. O quadro jurídico é conhecido, são igualmente conhecidas as dificuldades de obtenção de prova neste tipo de criminalidade, bem como as demoras e, por vezes, a falta de cooperação de instituições nacionais e internacionais. Essas condições afetam as investigações em todos os países. Daí que a estratégia de investigação seja crucial. No caso Marquês, a pronúncia veio confirmar a solidez dos indícios de crimes graves de branqueamento de capitais. A ação da justiça não pode ser criar megaprocessos (quiçá para deleite dos investigadores), com milhares de páginas, que obviamente irão tornar impossível qualquer decisão célere. A justiça criminal tem um propósito: acusar ou arquivar, condenar ou inocentar, mas tem que o fazer em tempo útil e razoável. A morosidade destes processos põe fatalmente em causa a credibilidade e legitimação social da justiça.

Há um padrão a que a justiça nos habituou nestes casos: os fortes indícios da prática de vários crimes vão-se esfumando, na fase de instrução ou de julgamento, seguidos de enredos intermináveis, com frequência, até à prescrição. E há também que ter em conta as consequências financeiras. Basta ver o que está a acontecer com a proximidade de prescrição das contraordenações aplicadas a Ricardo Salgado. Nada que não tenha acontecido no passado. Recordemos a prescrição do processo que o Banco de Portugal moveu contra Jardim Gonçalves e que o ilibou do pagamento de uma coima de um milhão de euros. Que lições tiraram o poder judicial e o poder político de todos esses casos? Aparentemente, nenhumas.

O caso Marquês e o caso BES, na sequência de outros casos de ribalta mediática de criminalidade económica, confirmam um padrão de intervencionismo do Ministério Público: desassombro em face do poder político e financeiro seguido do anticlímax da “montanha pariu um rato”. Ninguém está acima da lei e, por isso, não pode esperar impunidade por ter poder e dinheiro. Esse é um ganho inestimável da nossa democracia. Mas está a perder-se sem investigações estrategicamente eficientes e eficazes.

Finalmente, o sexto tema é o de que as exigências feitas ao sistema de justiça não podem ocultar a enorme responsabilidade do poder político. Compete a este, nomeadamente, medidas e meios que fortaleçam a ação do judiciário e desenvolvimento de estratégias robustas de prevenção de práticas corruptivas. No que respeita a estas últimas: instituições de controlo e de supervisão eficientes e eficazes; desburocratização de procedimentos de controlo; leis que não permitam “fugas"; restauração da ética de serviço público; medidas que ponham fim à promiscuidade entre o poder político e o poder económico agravada pela vertigem neoliberal. 

O processo Operação Marquês coloca a justiça e o Estado de direito numa encruzilhada dramática, da qual, enquanto sociedade, temos que sair bem. As elites do poder judicial e do poder político têm que estar à altura e não nos podem falhar. Mas nós, sociedade, instituições académicas, meios de comunicação social, também não podemos falhar o escrutínio democrático e o papel de aprofundar e não estilhaçar o Estado de direito. Em nenhum dos campos pode haver desistência.


 
 
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