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25-03-2021        Público

Há razões para que a discussão do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) parta de uma apreciação positiva e construtiva. Merece apoio a forma como se reconhecem problemas, vulnerabilidades e urgências e se assumem prioridades e respostas. Mas não deixa de ser útil uma análise crítica. O que está em causa é saber se ele está orientado para mudar alguma das coisas essenciais que precisam de ser mudadas e se isso corresponde a ideias fortes e articuladas. Provavelmente, o termo “missão” vai popularizar-se em breve, pois foi cunhado num livro recente por Mariana Mazzucato, uma autora com grande capacidade de influência na linguagem dos media e nas discussões convencionais. É de “missões” que venho falar. Lembro, de caminho, que o PRR se liga a outros instrumentos de planeamento e de financiamento, em diferentes escalas temporais (a conclusão do Portugal 2020, o Portugal 2030, o próprio OE). E tudo isto, quer dizer, o investimento planeado, é apenas uma pequena parte do volume de investimento anual na economia portuguesa, que até à débacle de 2011 sempre se situou acima de 20% do PIB, muitas vezes consideravelmente acima. As ideias essenciais, em vez de se limitarem a instrumentos isolados de política pública, devem, pois, articular-se transversalmente, influenciando as diversas esferas que contribuem para o desenvolvimento do país.

A avaliação positiva e o primeiro ponto a sublinhar têm a ver com a prioridade que é dada à provisão pública em campos essenciais – o SNS, a escola e a habitação. Isso não diz apenas respeito ao cuidado que é preciso dar aos cidadãos, em momentos tão graves como os que atravessamos. O muito que se aprendeu sobre o risco que advém do descuido ou da fragilização destas áreas e sobre os meios pelos quais se garantiram respostas aos portugueses em situação dramática não pode agora ser descurado. E deve dizer-se que uma boa parte dos resultados do investimento nestas áreas se traduzirão igualmente em emprego, qualificação da economia e recuperação do país. Não é só da sustentabilidade social que se está a cuidar, é também da sustentabilidade económica e ambiental. O que já se sabia sobre o SNS e a escola sai reforçado com a pandemia. E agora até os que andaram distraídos reconhecem que as condições de vida e de habitação de uma grande parte da população são intoleráveis humanamente e socialmente. O mesmo se tem de repetir quantos às grandes questões ambientais.

Há dois temas para que quero chamar a atenção, pois eles não estão suficientemente “afinados” no PRR. Correspondem a duas ideias simples: a nossa indústria é frágil e dependente e o território, por exemplo, o sistema urbano representado na economia das cidades não metropolitanas, está fragilizado como nunca esteve.

A dependência excessiva de serviços de escasso valor acrescentado, a ligação a cadeias de valor fragmentadas, em que a parte menos qualificada fica entre nós, o escasso poder de comando sobre essas cadeias, tudo isto constitui uma das maiores vulnerabilidades da nossa economia e, em especial, da indústria, com consequências económicas, sociais e ambientais profundas. Basta dizer que só 55 cêntimos de cada euro que exportamos correspondem a conteúdo nacional e, portanto, contribuem para o PIB. Os restantes 45 cêntimos foram antes importados. Sendo esta uma média, o panorama é ainda mais fraco na indústria e nalguns ramos emblemáticos da nossa modernização, como o setor automóvel. O que está aqui em causa é apostarmos numa reindustrialização assente nos bons princípios da economia circular, na valorização das relações técnicas e produtivas entre empresas nacionais, em bases regionais, visando reduzir as dependências. Quando as exportações forem equivalentes a 50% do PIB, como se almeja no PRR, interessa que isso não aconteça com serviços banais, mantendo-se um défice expressivo da balança comercial de bens. E, sobretudo, interessa que a indústria portuguesa, para produzir, não esteja dependente de fornecimentos que podem não chegar. As agendas e alianças para a reindustrialização verde que o PRR acolhe são demasiado limitadas setorialmente e confiam excessivamente em conceitos generalistas e abstratos, cujos efeitos sobre as condições materiais da economia se supõem intrinsecamente virtuosos, mas que dificilmente acontecem, na ausência de intervenções materiais efetivas. Isto é, de uma relação de incentivo e planeamento junto das empresas e dos sistemas produtivos, na escala territorial devida.

Quanto ao sistema urbano e às cidades médias não metropolitanas que o compõem – o segundo problema que aqui quero apontar –, o que está em causa é a perda, ao longo dos anos 2000, de capacidade económica e demográfica, com fortes regressões populacionais e esgotamento generalizado. Já aqui escrevi sobre isto. O facto de a Área Metropolitana de Lisboa (AML) se ter tornado na única NUTS III com crescimento demográfico prolongado tem a ver com o problema anterior, sendo que acrescentou um novo problema ao país – o crescimento concentrado na periferia da AML, com exclusão social e bolsas de pobreza que, significativamente, o PRR reconhece e a que dirige medidas. Devia merecer reflexão o facto de o único caso de identificação precisa de um problema territorial ser nas áreas metropolitanas. O problema das cidades médias é que as suas economias, as suas capacidades de criação de emprego e de fixação de populações, a própria presença capaz de serviços públicos, se esgotaram e urge reconstitui-las. Para lá do que se disse sobre a relação entre regiões do país (uma a concentrar população, as outras a perdê-la), acontece ainda que entre 2011 e 2019 emigraram anualmente, em média, cerca de 100 mil pessoas. O facto de mais de metade serem emigrantes temporários só vem reforçar o argumento da fragilidade das nossas condições materiais internas, que excluem em vez de incluírem. Ora, o PRR parece não identificar nem reconhecer este problema. Era positivo que o fizesse. E que, em conformidade, estabelecesse medidas de política especialmente dirigidas aos territórios, que devem ter nas cidades os seus principais ativos de desenvolvimento. Não basta tratar dos problemas ambientais urbanos.

Claro que para isto o PRR não pode assentar numa lógica de governação centralista, compatível com políticas de simples disseminação, mas dificilmente compreensíveis quando está em causa a recuperação do país e a sua sustentabilidade. As questões ambientais, industriais, urbanas, a organização da provisão pública e, em geral, uma recuperação assente nos princípios da sustentabilidade exigem presença institucional de proximidade com os territórios.

Uma nota final de outra natureza: Portugal dispõe de uma empresa pública de exploração e gestão florestal, a Florestgal, cuja ação deveria ser essencial para organizar os territórios onde a estrutura de propriedade é microfundiária e que, por isso, votam a floresta ao abandono; parece que a capacidade dessa empresa é absolutamente limitada, mesmo em concelhos devastados por incêndios. Não se conhece a sua ação nem se assume a sua importância. Poderá isto ser reversível?


 
 
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José Reis



 
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Observatório sobre Crises e Alternativas