Fará este mês um ano que foi decretado o estado de emergência e começou a desenhar-se uma realidade onde não cabem abraços ou certezas. A rutura com a normalidade tem um lado sedutor para as ciências sociais. Na forma como sofrem e resistem, as sociedades revelam-se. Onde e como dói não resulta apenas do vírus, mas das debilidades estruturais, assim como das ferramentas económicas, sociais e emocionais de que dispomos para resistir. Ficou claro que não estamos todos/as no mesmo barco. Racismo, patriarcado e capitalismo produzem desigualdades, que resultam em diferentes graus de exposição à doença e aos efeitos do confinamento. Se a opressão, nas suas várias formas, não é novidade, como podemos aprender mais? Ouvindo quem foi historicamente silenciado e nos ajuda a compreender o presente, lendo e relendo teorias marginalizadas, que deviam ter estado sempre no centro dos debates, e valorizando quem nos salva.
Os profissionais de saúde foram aplaudidos e é mais claro do que nunca a importância de um SNS confiável. Mas quando tudo fecha, a produção desacelera, a economia abranda, há uma dimensão da vida, tradicionalmente ignorada, que se revela tão importante como a medicina: o cuidado, que assegura as refeições, os trabalhos de casa das crianças, a rotina doméstica, o bem-estar e a confiança de que vamos sobreviver a isto. Há muitos anos que autoras feministas, como a italiana Silvia Federici, vêm assinalando a centralidade da esfera reprodutiva, que assegura o bem-estar de quem produz e sustenta a produção sem ser reconhecida ou compensada.
Quando as creches e as escolas fecharam, a produção abrandou e o teletrabalho se tornou parte do quotidiano, as casas passaram a ser lugares de produção e reprodução. Se a primeira pode abrandar, a segunda não permite pausas. E é por nunca ter parado que a vida não descambou. Educar crianças, cuidar de doentes, prestar apoio aos mais velhos, assegurar rotinas, gerir o frigorífico com o orçamento disponível, cozinhar, limpar, ouvir, mimar continuou a fazer-se mesmo quando a esfera produtiva entrou dentro de casa, junto com as aulas e as atividades extracurriculares.
Acabámos de assinalar o dia da mulher, não ignoremos que a opressão patriarcal estruturalmente nos atravessa. Ainda que cada um de nós possa conhecer um exemplo em que a esfera do cuidado é partilhada, sabemos que não é essa a regra. Sabemos, ainda, para quem quase sempre sobra a imensa carga mental que resulta da planificação e gestão das necessidades de todos/as. No campo académico, onde trabalho, os dados mostram que os homens aumentaram o número de publicações científicas durante o confinamento, enquanto as mulheres tendencialmente diminuíram. Não se trata apenas de reivindicar uma melhor distribuição do trabalho doméstico, mas também a valorização de uma dimensão essencial para a vida de todos/as nós, com ou sem filhos, e para a economia, que depende muito da capacidade para garantirmos a formação e a saúde mental das próximas gerações. Não são só os/as médicos/as que nos salvam, as cuidadoras também.