Foram os filósofos Michel de Montaigne e Francis Bacon, no final do século XVI, a projetar o ensaio como género literário. No livro sobre o humanista francês que publicou quando a guerra iniciada com a agressão nazi arrasara já o mundo de progresso material e pluralismo que conhecera durante a juventude em Viena e Berlim, Stefan Zweig salientou que Montaigne, mergulhado numa sociedade também ela dominada pelo ódio e pela intolerância, escolhera essa forma de escrita como modo de resistência. Para escapar às «exigências tirânicas» impostas pelos grandes poderes, para se proteger «contra a submissão a regras e a medidas ditadas do exterior», começou a escrever de acordo com a sua própria consciência. Tratava-se de «tentativas», de formas de descrever e de interpretar o seu mundo sem delas procurar fazer doutrina.
O ensaio, escreveu Miguel de Unamuno em Do Sentimento Trágico da Vida, funda-se na secularização do pensamento. Isto significa que começa a abrir caminho justamente «quando deixa de haver um monopólio eficaz das interpretações do mundo», e quando quem pensa o faz essencialmente por sua conta e risco. Não ignorando os tratados e o conhecimento estabelecido, tomando-os em conta, mas não se submetendo a eles. Aliás, o ensaísta sabe à partida que aborda um tema cuja dimensão e complexidade o ultrapassam e o que faz são experiências literárias, autobiográficas, filosóficas e eruditas que nunca esgotam um campo de análise, procurando antes abrir-lhe vias de evolução. «Romper com as suas costuras, convertê-lo num lugar de passagem em direção a outros campos que parecem remotos», diz Fernando Savater em A Arte do Ensaio.
Caraterística essencial do género é a presença mais ou menos declarada da voz do autor, que não se esconde por detrás das certezas e da autoridade do que parece estabelecido, mas antes explora, com ousadia, novas possibilidades e caminhos, assim procurando libertar a sua própria perceção da realidade e tudo fazendo por transmiti-la aos outros, alargando desta forma a pluralidade do conhecimento, das interpretações e das vias. Fazendo-o, não com a voz do ressentido ou do incompreendido, mas como esforço pessoal para dialogar de forma positiva, prospetiva e comprometida com a sociedade em redor. Neste sentido, O Homem Revoltado, de Camus, será talvez um dos mais perfeitos ensaios alguma vez publicados, dado tratar a compreensão do movimento do indivíduo e da história na perspetiva do intelectual público que procura colocar-se no lugar do «homem comum». Assumindo o papel, a expressão é novamente de Savater, do «inconformista perplexo».
Qual o valor que a estratégia corajosa do ensaísta pode ter no tempo que atravessamos? Ela é, desde logo, indispensável nos vários territórios do conhecimento, dado libertar possibilidades que o saber convencional restringe ou anula. É também necessária no território da reflexão política, contornando silêncios e levantando possibilidades, tantas vezes de caráter ainda muito prospetivo, que no futuro poderão fundamentar objetivos e programas. Mas torna-se particularmente útil, sendo aqui onde hoje se sente mais a sua falta e a sua necessidade, no trabalho diário – levado a cabo nos jornais ou na televisão, bem como no ativismo político, social e cultural – de quem tem voz no campo da opinião. Porque, em vez de fazer eco do previsível, permite, como no tempo de Montaigne, «projetar a incorruptível clareza do espírito», ajudando a desimpedir obstáculos e a desbravar caminhos.