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09-02-2021        Público

Olhando a nossa paisagem social nos últimos tempos, dir-se-ia que atravessamos uma espécie de “terra de ninguém”, uma zona de passagem vivenciada sob uma condição de liminaridade; um estado que se define pela contradição e “transição”, um interregno, onde o sentido do tempo e do espaço se reconfiguram, porque o que era deixou de ser, e ainda não é o que há-de ser. Entre um e outro passo, encontra-se a interferência dos afetos e as carências de sociabilidade, em especial se nos lembrarmos que o ano que passou, os meses que estão a passar – que custam a passar –, já são como uma década, tantas são as marcas que se inscrevem na nossa saturação geral.

O contexto de confinamento “adulterado” (chamemos-lhe assim) em que nos encontramos parece agora um jogo de luzes e sombras, em que o visível fica desfocado e o invisível se projeta a cores carregadas na nossa imaginação. Como aquele anúncio que passa nas TVs mostrando uma reunião de família como a vemos, e de seguida, a mesma cena, mas em slow motion, vista por um filtro que mostra nuvens de partículas microscópicas, porventura carregadas de vírus à solta, passando de boca em boca.

O clima de chuva dos últimos dias conjuga-se bem com o ambiente urbano nestas tardes cinzentas, não apenas pelo recolhimento obrigatório, mas sobretudo pela sensação de acanhamento, de claustrofobia e de risco que se adensa em tempos de pandemia. Depois, este enquadramento climático, conjugado com o panorama excecional em que mergulhou o nosso quotidiano, pinta de tons ainda mais carregados as nossas vidas, clamando por um isolamento que, sendo embora fisicamente cumprido, desencadeia pulsões e constrangimentos psicoafectivos de consequências desconhecidas. Em casa, somos estranhos em nós mesmos, asfixiados pela ausência do social – e nalguns casos pelo excesso de interação na vida privada –, estrebuchamos em busca dos fios que nos seguram à vida e nos dão segurança. Há quem não aguente e, por necessidade ou a pretexto dela, saia à rua para matar a sede de horizonte e a fome de um encontro espontâneo.

Atravessar o descampado pelos pingos da chuva é o que temos de continuar a fazer. Mas fazê-lo sem nos molharmos é uma tarefa árdua, mesmo que estejamos munidos dos melhores guarda-chuvas. Quanto tempo pairam no ar as partículas do vírus que está a varrer tantas vidas de portugueses, não o sabemos. A ciência parece ainda não saber. Quem passou por onde tenho que passar? Quem espirrou à entrada da loja? Que fragmentos de aerossóis escapuliram daquela mascara com o nariz de fora? Ai aquela tosse… olha aquele com ar suspeito… enfim, tal como esta chuva londrina, chuva molha-tolos, diz-se, mas que pode molhar também os mais prevenidos e inteligentes, devido às gotículas mais finas e densas, num cacimbo que nos começa a encharcar sorrateiramente, sem que demos por isso. É deste modo que atua o nosso inimigo invisível, que nos pode invadir silenciosamente e corroer por dentro, sem aviso prévio.

Há cerca de um ano, em meados de março de 2020, o mundo foi suspenso pelo impacto brutal e inesperado da pandemia, e então redescobrimos a natureza e sentimo-nos vergados à sua força. Momentaneamente paralisados e ainda atordoados, olhámos em redor, surpreendidos e indefesos perante a nossa vulnerabilidade face a um nano-inimigo, invisível, mas fortemente letal. Nessa altura, contudo, após o primeiro sobressalto, era a Primavera a querer mostrar-se, timidamente, mas a ostentar a exuberância da natureza. Recordo-me dos raios de Sol a irromper por entre os plátanos à beira do rio Saale (onde então me encontrava, veja-se “Reinventar a comunidade” PÚBLICO, 24.03.2020), parecendo querer dizer-nos algo mais, a obrigar-nos a questionar os nossos hábitos excessivos e múltiplas alienações. A travessia rodoviária que empreendi no início de maio de 2020 ofereceu-me a paisagem desolada das autoestradas vazias da Alemanha, França e Espanha, com alguns incidentes inesperados em quatro dias de viagem. Com os hotéis encerrados, a necessidade de pernoitar no carro em estações de serviço desertas – nalguns casos em convívio com pássaros e até coelhos que, a meu lado, pernoitavam na relva – e ainda, já próximo de Vilar Formoso, a surpreendente perseguição e operação stop pela Guardia Civil, tornaram aquela experiência numa aventura inédita. Mas nada que fizesse prever qualquer afinidade com os pequenos circuitos pedestres que hoje posso fazer à escala do meu bairro, em Coimbra. Ao contrário desse tempo, quando a temperatura e o despovoamento dos lugares permitiram dormir no descampado sem grandes riscos, em fevereiro de 2021 a espiral de contágios reflete a provável presença, em qualquer canto, em qualquer choque inopinado com o outro, de partículas virais prontas para nos invadirem.

A esta distância, e mais de dois milhões de mortes depois, podemos perceber melhor alguns traços psicológicos mais obscuros e inesperados que esta catástrofe provoca na espécie humana. Observando os detalhes do nosso quotidiano, e conscientes da enormidade do desastre, constata-se como o chamado Homo Sapiens é surpreendentemente adaptável e como essa maleabilidade nos conduz a modos de agir tão paradoxais. Por um lado, resguardados em egoísticos casulos de isolamento, por outro, atiramo-nos para a exposição ao risco de forma quase inconsciente. Enquanto não somos diretamente atingidos fazemos por ignorar ou esquecer uma realidade que, de tanto se intrometer no nosso caminho, se naturalizou e nos parece cegar perante o perigo. Como numa cidade em ruinas sob ataque persistente de bombardeamentos, mas onde, apesar da mortandade, subsistem vislumbres de vida a circular no meio dos destroços, inventamos rotinas e movimentos aparentemente alheados do drama geral, ansiosos por retomar os hábitos de sempre.

Fica difícil saber se estas pulsões comportamentais estão para além das necessidades elementares ou se são a prova provada que é a própria “negação” que se torna uma necessidade inelutável. Hoje, tudo está pior do que há dez meses em termos de risco, mas demasiadas vezes agimos como se já estivéssemos vacinados ou imunizados. Em contraste com o ambiente destrutivo de uma guerra convencional, as ruinas são neste caso invisíveis. No entanto, sabemos que as vítimas fazem fila em arcas frigorificas antes do enterro (e sem direito a cerimónia fúnebre). O choque e a dor são constantes e violentos para quem perdeu ou está em vias de perder alguém íntimo ou ente-querido, mas muitos inclinam-se para outra dimensão, elaboram circuitos mentais de escape que lhe permitam passar pelos pingos da chuva sem se molhar. Pelo menos essa é a grande ilusão de uma parte da sociedade (que não apenas os mais jovens). Conhecemos a dimensão da tragédia, ou melhor, sabemos os números, mas, sem conseguir suportá-los, tapamo-los na nossa consciência, ferida e confusa com tanta estatística. E, todavia, sabemos que são pessoas, não números. Os inimagináveis 13.257 mortos por covid no nosso país, nesta data, certamente não ignoraram os avisos, mas talvez na inocência dos afetos acabaram entubados no caos dos hospitais ou silenciosamente sucumbiram sozinhos.

Nas últimas semanas, os dias passam sob uma atmosfera pesada e fica difícil aguentar um fechamento tão prolongado e claustrofóbico. Em especial para quem, tendo crescido na aldeia, se habituou a fazer da rua o seu espaço de convívio e aprendizagem primordial. Cirandar pelo bairro num dia de chuva miudinha (esta “murraça”… como se diz na minha terra) não dá espaço para passar entre os pingos, mas o que tem de ser tem de ser. A resiliência humana é como a que se pressente naquela gata parda, que diariamente me espera sentada no muro e ao abrigo do umbral, quieta e paciente, mas ansiosa por uma carícia, espreguiça-se, sacode os pingos da chuva e aproxima-se em busca de um gesto afetuoso…


 
 
pessoas
Elísio Estanque



 
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