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04-02-2021        Jornal de Leiria

A crise pandémica que herdámos de 2020 não expôs apenas vulnerabilidades biológicas. Violências estruturais e fragilidades das democracias ocidentais vieram à superfície. Ao mesmo tempo que vozes progressistas souberam mobilizar-se, o populismo de extrema direita, compatível com o projeto neoliberal e inconciliável com os valores do modelo social europeu, reduziu a complexidade a um discurso monolítico, polarizado e de compreensão imediata: nós versus eles. Deste “nós” imaginado, que sustenta uma narrativa antissistema carregada de debilidades, são excluídos, com maior ou menor veemência consoante conveniência estratégica, refugiados, imigrantes, ciganos, negros e discursos feministas, antirracistas e anticapitalistas.

Há quem veja nas mobilizações antirracistas mais recentes, onde cabem a polémica das estátuas e outras manifestações, a origem do problema, alegando a polarização que promoveram. Esse argumento reflete muito mais o privilégio de quem o usa do que a realidade sociológica e a história que nos conduziu aqui. A polarização só é recente para quem pode escolher virar a cara e não sente no corpo os efeitos da violência estrutural, cujos alvos estão há muito identificados.

A sobrevivência das democracias não passa apenas por pôr fim à violência física e incluir sem saber aprender com a diferença. Passa por questionar as hierarquias que determinam quem conta (a história). Quando aceitamos uma só narrativa, falhamos coletivamente. É por isso que, em dia de eleições presidenciais, a falta de diversidade dos painéis de comentadores nas nossas televisões não é só um problema das feministas e dos coletivos antirracistas. Sem uma reflexão combinada a partir de múltiplos lugares de enunciação, seremos incapazes de compreender a complexidade. O silenciamento de determinados grupos reflete-se em todos/as nós, porque eliminamos variáveis, simplificamos equações e perdemos ferramentas de compreensão do mundo e de transformação social progressista. Mantem-se a distribuição do privilégio e facilita-se a vida aos que esgrimem argumentos falaciosos, inventando monstros e nomes como “ideologia de género” e “marxismo cultural”.

Poucos antes de 2020 terminar, assisti a um filme que marcou a minha viragem do ano. AmarElo. É tudo para ontem, do incrível rapper brasileiro Emicida, é uma declaração de amor, resistência e luta, que humaniza e fortalece em tempos de separação física, e uma aula de história, onde cabe a complexidade que foi eliminada dos livros. Este documentário não denuncia apenas o branqueamento da história, devolve-nos pedaços da mesma a partir de um roteiro onde o samba encontra o rap e nós encontramos ativistas, artistas e académicos extraordinários, que desapareceram sob o peso das estruturas patriarcais e coloniais. Não ganham apenas as figuras prestigiadas. AmarElo mostra um mundo que extravasa a narrativa dos vencedores. É desse mundo alargado, onde cabem os saberes de quem travou lutas desiguais, que precisamos para defender a democracia hoje.


 
 
pessoas
Sara Araújo



 
temas
pandemia    sociedade    democracia