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30-01-2021        Público [Ipsilon]
O tempo da pós-pandemia virá, é certo. Só não sabemos quando e em que condições vamos encontrar-nos, quão frágeis estaremos, individual e colectivamente, entre os que mantêm alguma esperança e os que ficaram ainda mais cépticos. Não sabemos com que energias poderemos contar para começar a reconstrução, uma reconstrução em que o silêncio ou a distância também possam existir, mas por opção, e não condicionados pela interdição.

A pandemia está a provocar rupturas sociais e epistemológicas de natureza mais global ou mais singular, mas estas rupturas não levam a uma revolução que possa alterar positivamente e com mais justiça o modo como habitamos o mundo. Não haja ilusões sobre o facto de que parte substantiva das estruturas sociais decorrentes do capitalismo vai manter-se em termos muito semelhantes aos de hoje – que a abissal diferença de rendimentos até cresceu (as grandes fortunas aumentaram a sua riqueza e os pobres ficaram mais pobres). Os conflitos não vão desaparecer, as catástrofes com origem imediata no comportamento humano desregrado vão continuar, bem como as tensões territoriais, porque a história da humanidade é uma história de guerras intercaladas por alguns tempos de paz, de barbaridade muitas vezes arredada por períodos luminosos de inteligência criativa e de convivialidade negociada.

Não se espere pois, desta introdução, a ideia de que é viável retomar um programa kantiano para a paz universal, nem a revelação de um messianismo de raiz laica ou religiosa. Pelo contrário, vou concentrar-me numa actividade minoritária, minimal, quase invisível, mas cujos impactos na literacia cultural e na aprendizagem de mecanismos de descodificação dos enigmas das artes, em tudo semelhantes aos das ciências, com o usufruto do prazer da descoberta, tanto intelectual quanto sensorial, não podem ser ignorados. Se algo aprendemos com a pandemia, embora pela negativa, é que entidades com pouca visibilidade para a maior parte das pessoas, como um vírus invisível, mas disseminado a grande velocidade, podem alterar a ordem do mundo e sobressaltar a humanidade na sua infinita pequenez.

A crise da mediação não é um fenómeno deste século. Como muitas crises, começou muito antes, e como muitas crises parte de um bom princípio, a democratização do ensino, de que se chegou entretanto a uma antítese, à sua massificação, em que se abrem portas ao seu contrário, como o negacionismo científico e a relativização do conhecimento. A autoridade do conhecimento e dos seus produtores e difusores passou a estar equiparada ao saber pré-científico desobrigado de todas as provas da argumentação.

A valorização da sociedade do espectáculo como a mais eficaz metamorfose do capital e dos seus mecanismos de alienação sobrepôs-se à autoridade da palavra, da memória e de todos os cânones constituídos ou em constituição, com um efeito nefasto no jornalismo, seja ele cultural, artístico ou científico. A fácil acessibilidade às redes de comunicação criou a sensação de que o poder do julgamento e da opinião “pessoalizada” é acessível a todos sem o requisito de fazer prova. Basta entrar no fluxo das emissões de mensagens para perceber como estas contribuem para a banalidade do espectáculo que predomina na comunicação. E assim, qualquer mensagem, desde que se percepcione como desvalorizando as outras, ou que reclame contra todas as subjectividades, surge como um lucro pessoal, uma satisfação narcísica.

Ao mesmo tempo, neste contexto, a função e a necessidade de haver mediadores foram sendo desvalorizadas, e se no caso dos jornalistas e dos professores a sua desconsideração foi visível e causou algum debate, no caso dos mediadores culturais, sejam eles da ciência, das artes, ou das práticas culturais, a ausência de reconhecimento institucional contribuiu para que a sua progressiva desconsideração não chocasse a opinião pública.

Paradoxalmente, contribuíram para esta invisibilidade muitos museus, centros culturais e outras instituições culturais, empregadoras destes mediadores, que muitas vezes os mantêm na situação de trabalhadores sazonais e precarizados, desvalorizando a importante tarefa que estes têm em mãos, no modo como incentivam e partilham com os cidadãos as mais diversas ferramentas para a convivialidade cultural, descodificando enigmas, estabelecendo pontes entre diferenças, estimulando a curiosidade pela estranheza.

Recentemente, Gaylene Gould, escritora e mediadora artística ("facilitadora”, como ela própria se identifica), interrogava-se sobre como vai ser o regresso à vida artística pós-pandémica. Na verdade, o que vivemos e ainda vamos continuar a viver sob a pandemia é um regime de sociabilidade mínima, maioritariamente digital, sem corpo e sem as suas expressões, sem a experiência permanente do cultural inesperado ou casual, tão determinantes na vida artística. Enquanto agentes da História, todos nós, vivemos com a sensação de termos ficado suspensos, como aliás grande parte da vida, e de terem também ficado suspensos, ou até dispensados, os interlocutores físicos, os mediadores fora dos ecrãs. Neste limbo, perdemos hábitos, protocolos, rotinas, conhecimentos, prazeres e grande parte da vida colectiva. Esta vida colectiva é essencial para a vida artística, neste momento dizimada por condicionantes ditadas por um vírus, que contribui para uma amnésia que cresce todos os dias.

No seu optimismo, Gaylene Gould sugeria que na pós-pandemia se reiniciasse a vida cultural e artística, chamando a atenção para uma série de reaprendizagens a fazer, em confronto com uma obra ou em redor dela. Em primeiro lugar, preparar-se para visitar os museus e as galerias, ir ao teatro e ao cinema, assistir a concertos, visitar os planetários. Em relação às obras, senti-las, torná-las familiares, reconhecer a sua intensidade e disponibilizar-se para a transcendência que podem provocar.

Reconheça-se a ousadia desta mediadora artística, no seu apelo a que se retome com tanta energia o reencontro com as artes, no seguimento de um período em que grande parte dos seus interlocutores – refiro mediadores – foi ignorada e dispensada.

Sabemos que, em qualquer programa de recepção artística, há dispositivos e mecanismos cognitivos que condicionam de modos diversos o confronto com a obra, confronto que exige não se ter receio da proximidade, nem do mistério, nem da ignorância que também nos habita. E é este, em grande parte, o papel do mediador.

No processo de reconstrução que teremos de atravessar, individual e colectivamente, os mediadores culturais, nas organizações artísticas e de ciência, serão fundamentais, para, apesar da reserva, da decepção, da descrença e do medo que nos últimos tempos se fazem sentir, facilitar este regresso ao enigma estimulante que são as artes e a cultura, ao desejo e ao prazer de as reencontrar e viver. É uma tarefa constante, para a qual precisamos, e muito de mediadores. O mediador não pode ser considerado um mero complemento escolar ou um promotor do marketing das actividades culturais, ou um agente que se vai buscar ocasionalmente para um contexto específico. O mediador é um elo cultural fundamental, agrega públicos, descodifica o que parece inacessível (e muitos museus são ainda hoje intimidantes para muitos públicos) para que aconteça o impacto emocional que uma obra pode provocar, e para que esta chegue a todos, para que o olhar crítico e o prazer da arte sejam de todos e perceptíveis para todos. Permitir a acessibilidade do cultural a quem o deseje não acontece por si só, são múltiplos os intervenientes, e o reconhecimento do mediador cultural é fundamental neste processo. 


 
 
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António Pinto Ribeiro



 
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