Em artigo publicado em outubro na revista Public Seminar, Mitchell Abidor desenvolveu uma útil reflexão sobre os caminhos plurais da esquerda política e a necessária resistência que esta tem o dever de levar a cabo contra a vaga autocrática, revanchista e populista que procura servir-se das democracias e das contradições do Estado social para os fazer desmoronar. O escritor e tradutor norte-americano apoia-se para o efeito na experiência histórica da Frente Popular, que, dirigida por Léon Blum, governou a França entre 1936 e 1938, juntando a SFIO (o embrião do futuro Partido Socialista), o Partido Radical e o Partido Comunista (que apoiava os dois primeiros, sem, todavia, participar diretamente no Governo), mas incorporando igualmente toda uma nebulosa de outros movimentos e personalidades da esquerda e do antifascismo.
Foi a Frente Popular que lançou reformas sociais importantíssimas e à época pioneiras, ainda hoje inscritas na memória do movimento operário e popular, que continuam a pautar os direitos e o quotidiano de bem-estar da maioria dos trabalhadores, como as férias pagas, a redução do horário de trabalho para a semana de 40 horas e as contratações coletivas. Abidor considera que a Frente foi também crucial para projetar uma primeira barreira de resistência ao avanço do fascismo, apesar das enormes dificuldades colocadas ao seu funcionamento pela expansão dos nacionalismos e pelo negativo contexto internacional. Na época com a Guerra Civil de Espanha, a agressiva política externa de Hitler e de Mussolini, e a afirmação de partidos e movimentos de extrema-direita em vários países, na França inclusive, a servirem de constante entrave às suas iniciativas. Acabando, de uma forma mais ou menos direta, em associação com uma pesada crise económica que fez disparar o custo de vida e o desemprego, por determinar a sua queda, abrindo caminho, após uma fase de hesitações e recuos, para a chegada ao poder do Marechal Pétain e de Pierre Laval, protagonistas centrais do governo colaboracionista de Vichy.
Todavia, o exemplo da Frente, traduzido numa aproximação tática entre correntes que dentro da esquerda habitualmente se hostilizavam – com o PCF a manter-se na altura fora do Governo, embora sem o hostilizar –, demonstrou a sua vantagem em relação ao que ocorrera na Alemanha e na Itália, onde, apesar do avanço rápido e brutal da ameaça totalitária, essa hipótese de coligações positivas permaneceu fora do horizonte. De forma arguta, o autor do referido artigo considera ser este um exemplo que hoje, num novo contexto de ascensão da direita, inclusive a mais extrema, deveria ser olhado e tomado em consideração por muitos dos partidos e movimentos antifascistas. Principalmente aqueles que privilegiam de forma quase exclusiva a reivindicação pontual, as manifestações de rua e até as polémicas intestinas, em detrimento de aproximações necessárias para vencer a ameaça galopante dos nacionalismos, dos populismos, da extrema-direita e de todos os que desejam a destruição do Estado social.
Esta ideia pode não parecer inovadora, em particular em Portugal, onde a experiência do acordo de incidência parlamentar patrocinado pelo Partido Socialista e que envolveu Bloco de Esquerda e Partido Comunista – batizado caricaturalmente de «Geringonça» por parecer um mecanismo excêntrico na tradição da nossa Terceira República –, permitiu inverter a deriva neoliberal e de direita que, entre 2011 e 2015, se esforçou fazer regredir rapidamente as muitas das conquistas sociais e políticas que tinham resultado da Revolução de Abril e de décadas de lutas por direitos fundamentais que a antecederam e se lhe seguiram. Todavia, o exemplo da aliança para defrontar o inimigo principal parece não ter frutificado. Por este motivo, a necessidade de acordos, que sem excluírem a identidade própria de cada uma das forças em presença as aproximam no combate pelos objetivos e direitos fundamentais, deverá, de acordo ainda com Mitchell Abidor, fazer emergir, com um ovo de Colombo, a solução óbvia, tão difícil de alcançar quanto imperativa, dos acordos fundados em metas partilhadas e urgentes.
Esta simplicidade, se pode ser apreendida sob a perspetiva da observação histórica, é muitas vezes difícil de entender, e mais ainda de produzir frutos, no calor das controvérsias que, regularmente e por todo o lado, tantas vezes abalaram e continuam a abalar a esquerda política. São inúmeras as vezes em que a cegueira, associada a objetivos de obtenção da hegemonia e a expressões de cálculo eleitoralista por uma das suas partes, tem de facto favorecido os seus piores inimigos. Os últimos duzentos anos estão povoados de exemplos desta natureza, como aconteceu com o caminho aberto aos seus impiedosos adversários na Alemanha na fase de ascensão do nazismo ou no decurso da Guerra Civil de Espanha, ou então, dando um grande salto no tempo, na Europa de hoje.
Uma dificuldade de entendimento ampliada quando temas potencialmente fraturantes, como aqueles ligados aos direitos das minorias, ao antirracismo e a outros combates mais sectoriais, ou problemas particularmente difíceis, como a articulação entre a necessária política reivindicativa perante as dinâmicas do capitalismo e a complexa arte de governar, emergem neste processo, privilegiando a rua, sempre necessária como lugar de mobilização, ou o confronto verbal, em detrimento do diálogo profícuo, sempre imprescindível, em democracia, como instrumento de políticas concretas. Este produz frutos, como ensinou, entre outras, a experiência da Frente Popular e também a da «Geringonça». Por cá, como não poderia deixar de ser, este entendimento, negociado numa dupla perspetiva de afirmações e de cedências, é absolutamente necessário. Principalmente quando, como neste momento que cruzamos, devido às grandes e inevitáveis ondas de choque criadas pela pandemia, e ao aproveitamento que delas está a fazer uma direita cada vez mais hostil às conquistas das últimas décadas, se perspetiva um novo tempo de crise e conflito, perante o qual se torna imperativo identificar o que é essencial e urgente daquilo que, de momento, é acessório e pode ser adiado.