O mote desta crónica prende-se com as eleições norte-americanas de 3 de novembro e combina o título de uma conhecida canção, God bless America, escrita por Irving Berlin durante a Primeira Guerra Mundial, e transformada no curso da Segunda em hino patriótico, com o de uma outra, This is not America, da autoria de David Bowie, gravada em 1985 com o grupo do guitarrista Pat Metheny. No último parágrafo esclarecerei o sentido deste jogo.
Depois de ao longo do século XIX os Estados Unidos da América terem sido encarados como lugar de fuga e de exílio para milhões de perseguidos e espoliados, como espaço de oportunidades ou enquanto pátria da liberdade, a partir do século passado boa parte do pensamento progressista passou a vê-los como sede ou fautor dos maiores males da humanidade. O impacto da Revolução Russa de 1917, e depois o da Guerra Fria, bem como as lutas de libertação nacional, iriam forçar em muito essa aversão. Sucessivos governos e alguns setores da sociedade norte-americana tudo fizeram, aliás, para merecê-la. As grandes disparidades sociais, o apoio a tiranias sanguinárias, o desvario imperial e belicista, a cultura do quotidiano tantas vezes pautada pelo poder do dinheiro e da ignorância, pelo fanatismo e pelo racismo, foram, aliás, fatores que ajudaram a ampliá-la. Mesmo sabendo-se que ali continuava a existir esse grande espaço aberto onde se mantinha a liberdade de viver, de trabalhar, de pensar e de opinar, bem como a de lutar por uma sociedade mais justa.
Em algumas áreas, essa aversão tem permanecido inalterável, mesmo quando as circunstâncias alteraram certas realidades e expectativas, como ocorreu durante a presidência de Barack Obama, mostrando-se algumas vezes exagerada e mesmo injusta, sobretudo quando comparada com a compreensão que é evidenciada perante outros regimes despóticos e injustos. Esta tem passado, nas décadas mais recentes, por uma aceitação, por vezes até por alguma cumplicidade, face à democracia musculada que hoje domina a Rússia, ou perante o regime despótico que governa a China. Infelizmente o antiamericanismo cego e primário, que generaliza sem ter em conta a complexidade da sociedade norte-americana e a sua história, tem sido um fator de bloqueio para se alcançar uma compreensão mais completa, equilibrada e construtiva do mundo. Injusto, aliás, para os milhões de cidadãos norte-americanos que geração após geração se têm batido por uma sociedade melhor e também por um mundo menos instável e desigual.
Ele foi consideravelmente ampliado com a eleição de Donald Trump, notando-se também no pessimismo, mesmo num certo fatalismo, com o qual amplos setores de opinião encaram o ato eleitoral de 3 de novembro. De facto, a manipulação da informação e das redes sociais, o apelo aos instintos mais primários de setores fanatizados, supremacistas ou de ultradireita, o ódio como instrumento de política nacional ou internacional, bem como a atuação irresponsável e burlesca da sua personalidade egocêntrica e megalómana, que apela aos sentimentos mais primários do humano para se conservar no poder, lançando lama sobre todos os que a contestam – incluindo-se nestes até muitos políticos e eleitores republicanos – tem levado o antiamericanismo até um novo patamar, reduzindo a esperança na hipótese de uma mudança positiva. Face, precisamente, a um americanismo brutal, com o qual não é possível dialogar.
Regressando aos títulos das duas canções que foram evocadas no primeiro parágrafo. A «salvação» da América e o seu afastamento de uma consideração global como odiado Estado-pária, passa, de facto, e em boa medida, pela dramática escolha eleitoral que se avizinha. Ela coloca frente a frente, não dois programas políticos antagónicos, mas a afirmação da diferença imensa que existe entre a decência da democracia e a obscenidade do autoritarismo. Permitirá provar, esperemos, que este, apesar de disseminado como uma peste, na realidade «não é a América». Ou pelo menos não representa uma boa parte dela.