Os responsáveis pelo regime derrubado em Abril de 1974 costumavam invocar, na retórica usada para se legitimarem e para efeitos de propaganda, o caráter supostamente pacífico, cordato e obediente do «bom povo português». Num dos seus mais relevantes discursos, aquele proferido em Braga a 28 de maio de 1936, quando da celebração do 10º aniversário da vitória da «Revolução Nacional» sobre a Primeira República, Salazar adicionou aos valores que julgava sagrados e indiscutíveis – Deus, Pátria, Autoridade, Família, Moral, Trabalho – um dever de bonomia e de consentimento que excluía todo o conflito social e o menor indício da luta de classes. A ideia de «povo» que o Estado Novo concebeu e difundiu requeria, de facto, o duplo pressuposto da inexistência de razões para qualquer conflito social e de uma vida coletiva que fluiria na alegre aceitação da ordem política e social em vigor. O recorrente uso do termo «gentes» – «gentes beirãs», «as nossas gentes» – ainda acentuava essa noção de um todo idealizado como uniforme, pacificado e feliz, sobre o qual se exercia a autoridade vigilante e paternal do ditador.
Com um objetivo inteiramente oposto, a expressão «bom povo português» viria a ser retomada no título do excelente documentário fílmico sobre a situação social e política de Portugal durante o processo revolucionário de 1974-1975 realizado em 1981 pelo cineasta Rui Simões. Justamente porque nele se procurou testemunhar o confronto entre esse povo que o salazarismo concebera e «folclorizara», e aquele outro, cada vez mais inquieto, exigente e conhecedor dos seus direitos, que naquele período de rápida e profunda transformação estava, junto com a democracia, a nascer em Portugal. De notar, aliás, que a partir da Segunda Guerra Mundial, e tanto a Ocidente quanto a Leste do continente europeu, a queda dos diversos sistemas totalitários foi sempre coincidindo com a diluição da ideia de um povo uno, identificado em primeiro lugar pela nacionalidade e pela história, e separado dos demais por intransponíveis linhas de fronteira.
As diferentes formas de populismo servem-se também desta tentativa de tornar uno aquilo que na verdade é plural. Os seus porta-vozes e doutrinadores falam sempre em nome de um «povo» imaginado que afirmam representar, e que consideram unido por um conjunto de medos e de rancores que proclamam poder resolver. De novo através da produção de um todo cuja identidade assenta em primeiro lugar na negação do outro, do diferente, seja este estigmatizado pela língua, pela história, pelas convicções, pela religião, pela cor da pele, pelos hábitos sociais ou pela sexualidade. Além disso, e como aponta o filósofo político argentino Ernesto Laclau, o populismo assenta numa estratégia discursiva destinada a «construir uma fronteira que divida a sociedade em dois campos e apela à mobilização dos ‘miseráveis’ contra os ‘que estão no poder’». Não existe já uma ideologia, ou um programa político minimamente coerente, mas uma estratégia de tomada e de conservação do poder apoiada na manipulação da insatisfação e na produção de um «nós contra eles». É neste contexto que emerge, as palavras são de Chantal Mouffe, «um novo sujeito da ação coletiva, o povo, capaz de reconfigurar uma ordem social sentida como injusta».
O encontro entre o populismo e o extremismo de direita ocorre justamente com esta nova sacralização do «povo», ou das «gentes» – termo de volta ao discurso público, utilizado agora por alguns políticos e por um determinado modelo de jornalismo –, abordados como um todo e transformados, contra a importância da cidadania e da democracia, em instrumento de legitimação da autoridade. Ao serviço daqueles que, através de um discurso sempre linear e primário, sem subtilezas que os menos instruídos não sejam capazes de entender sem esforço, simulam falar em seu nome, convencendo-os de que já não precisam de intermediários pois estão naturalmente representados. É sobre este grande equívoco que se apoia a força e se ergue o grande perigo do populismo.