Continuamos, justificadamente, a ter medo da covid19, mas há por aí outros vírus perigosos que sorrateiramente se vão instalando. A associalização e o confinamento militante em que vamos sendo acantonados, tornam-nos tolerantes perante violações de direitos individuais e coletivos, e produzem uma sociedade apática.
A má gestão e a não resolução de grandes problemas socioeconómicos, como aqueles com que nos deparamos, geram perigosos subprodutos. No plano político projetos ultraconservadores e fascistas. No plano social um crescente de micro conflitos, de falsas disputas e clivagens: nas relações entre gerações potenciando disfunções e ruturas; no trabalho, aproveitando condições diferenciadas dos trabalhadores ou colocando o setor privado contra o público, para incapacitar a ação coletiva e intensificar a exploração; nas relações entre maiorias e minorias e entre culturas, para gerar intolerâncias e ódios.
A esmagadora maioria das pessoas sente necessidade de segurança e estabilidade, de condições de sociabilidade, de uma economia a funcionar. Contudo, a expressão “retorno à normalidade” pode ser uma mera ilusão ou ter interpretações subversivas. O futuro nunca foi nem será retorno ao passado. Porém, podem surgir recuos e dolorosos retrocessos civilizacionais, camuflados de alternativa ou de modernidade no início do seu percurso.
O futuro constrói-se a partir das condições concretas em que nos encontramos. Pessoas, empresas e instituições não têm possibilidade de projetar o dia de regresso às condições existentes nas vésperas da pandemia que, em muitos casos, pura e simplesmente não existirão mais. É preciso conter os duros impactos sociais e económicos da pandemia, mas é um erro grave deixar para depois as políticas estratégicas de recuperação da economia. Aqueles impactos vão prolongar-se mais do que era expectável. Por outro lado, a retoma das atividades das empresas e dos serviços tem de ser progressiva (mesmo com resultados pobres ou negativos) para que exista criação de valor, se possam realizar reconversões de atividades, reestruturações de empresas e capacitação dos trabalhadores. Essa retoma é necessária para se criarem novos projetos e para posicionar melhor a nossa economia nas cadeias de valor em processos de mudança.
Se ficarmos pelo atentismo no “retorno à normalidade” podemos ter a certeza de que, rapidamente, chegaremos a uma situação em que os défices da nossa matriz de desenvolvimento e as fragilidades do Estado se agravarão, acompanhados pelo aumento exponencial do desemprego, pelo aprofundamento das injustiças, das desigualdades e da pobreza. Um cenário pesado para a esmagadora maioria dos portugueses pode ser um maná para estratégias de enriquecimento assentes em baixos salários, na apropriação de fundos coletivos e na amputação de direitos laborais, sociais e democráticos.
Neste tempo de exaltação da frugalidade e da moderação, lembremos quão frugais são os trabalhadores e o povo, e que a moderação nem sempre é uma virtude. Por vezes é tão só a forma ardilosa de não incomodar as maiorias dominantes. Uma certa moderação e pretenso cavalheirismo, muito invocados por certas elites, deram cobertura a gestões danosas, a compadrios e corrupção, que nos custam hoje dezenas de milhares de milhões de euros.