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21-06-2020        Público

Numa tarde do final de abril de 1945, quando uma equipa de soldados norte-americanos fez explodir perante uma câmara de filmar a suástica de ferro e granito que em Nuremberga encimava o Estádio onde tinham sido encenados os gigantescos comícios dos congressos do Partido Nacional-Socialista, asseverou-se perante o mundo a derrocada do devaneio imperial de Hitler. Onze anos depois, durante o levantamento popular antissoviético de Bucareste que teve o apoio dos comunistas reformistas húngaros, uma das primeiras iniciativas da multidão em fúria foi a demolição da estátua colossal de Estaline erguida à entrada do Parque Városliget. Estes dois episódios de iconoclasia – replicáveis à escala dos largos milhares – podem ser invocados contra o receio de que da destruição de peças monumentais tomadas como símbolos de uma ordem política detestada resulte forçosamente um apagamento da História. Pelo contrário, assinalaram escolhas julgadas necessárias, adquirindo um peso histórico próprio.

A destruição ou a transformação de marcas do passado julgadas afrontosas é, pois, uma constante histórica, resultante de conflitos que determinam a ressignificação do passado. Após o assassinato de George Floyd, a vaga, traduzida no derrube ou na mutilação de estátuas tomadas como símbolos públicos do esclavagismo, do racismo ou do colonialismo, que percorre os Estados Unidos e se expandiu já para outras cidades do mundo, integra esse fenómeno histórico, devendo imperativamente ser compreendida no seu contexto e complexidade, importando sempre distinguir o mero vandalismo da integração em protestos públicos ou em reivindicações coletivas, ainda que os dois aspetos possam surgir combinados. Se olharmos os símbolos tomados como alvo como «lugares de memória», no sentido dado por Pierre Nora às construções que projetam, na lembrança partilhada das sociedades, figuras, acontecimentos ou escolhas do passado que conferiram sentido a uma dada ordem social, estaremos em condições de compreender a sua importância, mas também o seu significado tantas vezes transitório.

Não é difícil compreender este aspeto, se numa perspetiva panorâmica o processo histórico for encarado como sucessão de equilíbrios políticos, sociais e culturais, em condições de legar sinais, ideias ou memórias que podem ou não ser rejeitadas, num contexto de disputa, pelos que os herdam. Enzo Traverso fala da História «como campo de batalha», lugar de conhecimento onde a violência, as vítimas e também os seus algozes, mudam com frequência, de acordo com as vozes invocadas, o tempo da sua produção e as perspetivas e escolhas políticas de quem a escreve ou a celebra. Trata-se de uma sequência inevitável, que sempre inclui silêncios e esquecimentos, mas também vozes replicadas num tempo novo, onde jamais é possível, como se nada do ocorrido tivesse a ver connosco, do passado «fazer tábua rasa».

Ao abordar no PÚBLICO a presente vaga de destruição de estátuas e símbolos, a jornalista Ana Sá Lopes escreveu que «assumir a História é assumi-la por inteiro». Ideia inteiramente justa se a aceitarmos com a consciência plena de que o «inteiro» da História é múltiplo e jamais unívoco, e que as interpretações do passado dependem sempre do tempo, do lugar, do contexto social, das leituras do mundo e das contradições através dos quais são produzidas e disseminadas, jamais se mostrando absolutas e estáveis para todo o sempre. De acordo com o historiador alemão Reinhardt Kosseleck, longe de serem dois continentes separados, passado e futuro encontram-se unidos por uma relação dinâmica, criadora, que cada presente deve viver e resolver de forma própria.

No entanto, as marcas do passado não podem ser deixadas ao arbítrio dos conflitos e da luta social, pois se assim fosse ele chegar-nos-ia como amontoado de ruínas. Estudá-lo e debatê-lo, colocá-lo em perspetiva, perceber que o que num contexto é justo noutro pode ser crime, é o caminho mais racional. Por isso, podem deslocalizar-se estátuas e outros símbolos se eles forem extrema e abertamente vexatórios, colocando-os em museus e parques e associando-os ao estudo crítico da sua origem e significado, como foi feito, por exemplo, em Estados do leste europeu. Não num processo de reescrita ou apagamento, mas procedendo a uma interpretação mais completa.

Todavia, em circunstâncias de luta social aguda, a destruição catártica dos símbolos julgados negativos, ainda que nem sempre justa e plenamente informada, ou mesmo reprovável, é por vezes inevitável. Combates sociais e revoluções não passam por planos traçados a régua e esquadro que em ambiente controlado eliminem a ira e a iniciativa espontânea dos seus agentes. A História mostra-o constantemente. O necessário, nestas circunstâncias, é que isso não redunde em tentativas brutais de reduzir o passado a cinzas, procurando, como na China da Revolução Cultural, forçá-la a regressar ao quilómetro zero.


 
 
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Rui Bebiano



 
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