A Internet das coisas é como a invenção da sanita. Não muda os hábitos das pessoas. Apenas as mantém dentro de casa.
Em 1965, Hitchcock, numa das suas intervenções públicas, deixou claro que a televisão — à época, a caixa que tinha chegado para mudar o mundo — representava a mesma coisa que a invenção da sanita, na exata medida em que não vinha mudar os hábitos das pessoas, servindo apenas para as manter dentro de casa.
Na época em que, alegadamente, a Internet se substitui à televisão enquanto instrumento que vem mudar o mundo e enquanto dispositivo que ajuda as pessoas a manter-se em casa, urge perguntar se a Internet muda ou não, e até que ponto, os hábitos das pessoas. Esta é a questão que parcialmente, de forma breve, discutimos neste texto, olhando, especificamente, o campo da educação.
De repente, com o confinamento, mais de 2 milhões de alunos ficam fechados em casa. O abalo que isso representou para muitas famílias, incluindo sobretudo os alunos, traduziu-se, entre outras coisas, no reconhecimento da função social da escola. Com o passar das semanas, a importância e a incontornabilidade da escola assumem uma relevância que vai muito para lá da mera função de ensino e de aprendizagem.
A questão é se neste indefinido lapso de tempo, a comunidade escolar aprendeu a viver e a sonhar com outra escola ou se fizemos apenas o possível para, quando isto passar, voltarmos a ter a escola que tínhamos antes da pandemia, mantendo os alunos ligados até esse dia?
A esta junta-se uma outra questão igualmente relevante e não dissociável da primeira: até que ponto estavam as escolas e as famílias preparadas para um ensino não presencial e como sairão da atual situação para, numa recorrência pandémica ou numa eventual alteração dos modelos de aprendizagem, incrementar um ensino mais centrado em casa?
Generalizando de uma forma que não fará jus às exceções, mas que não será excessiva, o confinamento forçado revelou globalmente uma manifesta e uma estendida falta de preparação do sistema de ensino para lidar com uma aprendizagem não presencial. Duas questões gerais assumem particular relevância.
Por um lado, uma crença desmesurada e acrítica numa espécie de cultura do “estamosOn”, decorrente do logro que essa Internet das coisas ou Internet de tudo, e que uma imaginada geração de nativos digitais, de “smartphonomaníacos”, nos deixariam bem colocados para o ensino não presencial.
A corrida inusitada à aquisição de equipamentos tecnológicos, pressionada também, diga-se, pelo teletrabalho; o “regresso” da telescola/#estudo em casa; a total inexistência de informação sobre o número de alunos carenciados de equipamentos necessários para o ensino não presencial; a necessidade de partilhar, num sistema de uso mais intensivo e de imposição de horários, redes e equipamentos domésticos; entre outros, rapidamente mostraram a persistência de desigualdades gritantes e os limites para se passar em condições adequadas para um ensino não presencial.
Há, ainda assim, que registar o esforço, diria coletivo e globalmente satisfatório, para se ter assegurado em tão curto período os mínimos olímpicos. Iniciativas governamentais, da sociedade civil, das direções das escolas, das associações de pais (…) deram inegáveis e variados contributos e mostraram que outra escola é possível.
Por outro lado, sobressai a resistência cultural a uma nova forma de ensinar e de aprender e a emergência, num novo contexto, de velhos fantasmas que assombram estruturalmente a escola. O que nos mostra que, sendo absolutamente necessário, no atual contexto ou num próximo parecido a este, não bastará ter mais e melhores computadores ou mais e melhor Internet, se isso apenas nos servir para nos mantermos fechados em casa sem que os hábitos mudem ou, pior, que se degradem.
De forma muito abreviada, essa resistência cultural manifesta-se, por exemplo, no receio de muitos pais em relação ao uso de plataformas de videoaulas síncronas, nuns casos por razões de segurança, noutros casos pela intromissão num ambiente doméstico que não se quer revelar visualmente. Ambas, razões legítimas, ainda que ambas coexistam com um generalizado alheamento acrítico dos educandos e dos seus pais em relação ao uso intensivo, quotidiano, de aplicativos muito menos seguros e mais invasivos. Sem a promoção de literacia digital, também para os pais, mais Internet, mais computadores e mais ensino não presencial pode servir para pouco mais que manter-nos em casa.
A resistência cultural manifesta-se também do lado dos professores. Seja por impreparação para lidar com o ensino não presencial e/ou com dispositivos tecnológicos, que mentalmente pode colocar os professores numa situação de inferioridade percecionada em relação aos seus alunos “smartphonomaníacos”; seja pela falta de equipamentos adequados; ou pela mesma razão de se querer proteger o ambiente doméstico; seja ainda pelo esforço acrescido, exigido pela adaptação a novos métodos e conteúdos; seja, last but no least, por se saberem mais observados, nesse contexto, pelos educadores.
Disfarça-se, frequentemente, da pior maneira possível, sobrecarregando-se os alunos e as famílias com uma carga de trabalhos que não é globalmente dimensionada ao tempo de estudo, nem compatível com ambientes domésticos geridos em contexto de crise. Também aqui é necessário reforçar a literacia digital; apostar em funções de coordenação que tenham competências e que disponham de tempo para poder organizar adequadamente o ensino não presencial; e, não menos importante, valorizar a função de professor.
Não faltam só computadores e Internet. Falta, por exemplo, uma ética para o trabalho feito, com regras e com método, a partir de casa. E isso não é só uma responsabilidade das famílias. É também uma competência que muitos não podem aprender, em casa, “ver fazendo”. Falta, por exemplo, alinhar os conteúdos de “Cidadania e Desenvolvimento” com uma educação cívica e deontológica comprometida com o ensino não presencial. Falta disseminar a consciência que, confinados nos seus quartos, em cubículos, ou no telemóvel, é em casa que os alunos podem estar mais isolados que em qualquer outro lugar, uma vez que lhes falta o confronto com a diferença e as oportunidades para desenvolverem sentimentos de pertença que a comunidade escolar lhes oferece.
Fechados em casa, com Internet e com computadores, os alunos tendem a reproduzir comportamentos que adotam na escola, reavivando os fantasmas da indisciplina, da hiperatividade e dos famosos deficits de atenção. Desligam a câmara do computador porque é a maneira mais fácil de desligar da videoaula; criam perfis falsos para atormentar, em privado, os colegas ou fazer bullying no chat/bate-papo das plataformas; fingem concentração, mas gerem uma atividade paralela no smartphone durante a aula síncrona; com os pais, que fazem de professores, fora de casa, a telescola fica para depois (…). Os professores sentem falta das faltas e sobretudo de recursos e de competências para gerir este contexto.
Ouve-se, com frequência, dizer que as crianças passam demasiado tempo na escola. O que acaba por ser tão mais verdade quanto a escola é a [única] alternativa para que as crianças não fiquem sozinhas em casa. A escola toma conta, quando as famílias não o podem fazer. Se, com a crise económica, com as escolas fechadas e perante a necessidade de os educadores terem de trabalhar fora de casa, o preço a pagar for o de ter que deixar crianças com 12 ou 13 anos sozinhas em casa, ligadas à rede, é mais provável que improvável que a Internet venha mudar os hábitos das pessoas e que possa ser um contributo valioso para melhorar o sistema de ensino. Desenvolver políticas públicas estruturais de apoio às famílias com crianças em idade escolar é mais urgente que nunca.