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06-05-2020        Público

Pessoalmente encerrei um capítulo e preparo-me para um novo recomeço. Será possível imaginarmos que a sociedade humana tem a capacidade para encarar a viragem em curso como um novo capítulo pós-pandémico? Se um semestre passado num ambiente académico e numa cultura bem diferente na minha já seria motivo marcante para que o regresso significasse um “virar de página”, o inesperado prolongamento por mais um mês e meio (em confinamento, naturalmente) no contexto em me vi abruptamente “sitiado” só pode ser encarado, agora que estou de partida, como o fim de um capítulo. Todavia o que proponho aqui é uma breve reflexão em que se cruza parte da experiência académica que vivi nos últimos meses com a observação do flagelo global que todos estamos a viver.

O lugar de onde escrevo é igualmente no duplo sentido: o lugar espacial, mas também temporal a partir do qual se perspetiva um antes e um depois, enfim, um lugar e um momento em que profundas viragens se adivinham no horizonte. A primeira perspetiva centra-se na cidade e região onde passei os últimos seis meses (Universidade de Jena, Alemanha) e que me levou a procurar captar não apenas as atmosferas da vida social e académica no presente, mas também beber o tempo histórico no sentido de ensaiar uma espécie de arqueologia centrada em alguns pensadores de finais do século XVIII, que marcaram profundamente os meios intelectuais desta região. Por esta universidade passaram nomes como FichteHegelSchellingFriedrich von Schlegel e Friedrich Schiller (estes fizeram parte do corpo docente), mas também Ferdinand Thönnies como estudante, e ainda Karl Marx, que aqui se doutorou (em 1841).

Por outro lado, a razão kantiana, outra fonte do pensamento alemão contemporâneo dos citados românticos, coloca em equação a sensibilidade estética e a questão moral, que podem reconciliar-se com a realidade prática, em particular se guiadas por uma racionalidade superior, enquanto “imperativo categórico”. Neste caso, o dever moral orienta-se pela procura da justiça e do bem-estar geral, mas se a edificação do bem-estar geral convoca a ligação de cada um à comunidade, há toda uma construção social e partilha de valores que teremos de promover como requisito da coesão social. A esse propósito, deve colocar-se – em particular nesta conjuntura, que se prevê de viragem – a questão da justiça social e da harmonia fundada na reciprocidade, na dádiva e na partilha como “imperativos categóricos” para os próximos capítulos que nos esperam.

Num momento em que a incerteza e a perplexidade se apoderam de nós, dada a iminente disrupção socioeconómica que enfrentamos, há que indagar e questionar o mundo em que vivemos e aquele onde queremos viver daqui por diante. Não é apenas o “novo normal” que vamos enfrentar, mas que tipo de “normalidade” queremos contruir para o nosso destino coletivo. O debate não pode limitar-se ao habitual registo político ou aos muitos diagnósticos económicos que temos ao dispôr. Se queremos contribuir para esboçar um ensaio filosófico – as pessoas precisam de reaprender a amar o conhecimento – que promova, com novos ideais humanistas, subjetividades e valores capazes de romper com hábitos instalados, é importante criar dispositivos mentais abertos à desconstrução.

Por isso recordo aqui um outro nome, este da escola francesa, o sociólogo do século XIX E. Durkheim, igualmente preocupado com os valores morais e com a coesão social, incluindo fenómenos como o suicídio e a divisão do trabalho. Numa época de forte instabilidade das estruturas socioeconómicas, tais temas surgiam como ameaças a uma efetiva “solidariedade orgânica”, a condição que este autor propunha para evitar a “anomia” social. Em todo o caso, e apesar das boas intenções do positivismo e da crença durkheimiana no papel do Estado de direito e nas corporações como agentes da integração e da harmonia, sabemos bem que nem estas propostas nem o romantismo dos clássicos alemães, nem mesmo as influências do iluminismo progressista, conseguiram travar as injustiças e desigualdades chocantes induzidas pela modernidade capitalista.

Como sabemos, foi maior o impacto de guerras, conflitos sociais e calamidades naturais na transformação histórica do que a mudança paulatina e incremental. As instituições, quando não são derrubadas por revoluções, vão a reboque das lutas sociais. Mas se o futuro continua a não ser senão um misterioso desconhecido, as lições da história oferecem-se como fontes inspiradoras. O capitalismo predador dos séculos XVIII e XIX apoiou-se num grande paradoxo, em que o progresso arrastou consigo a miséria e a fome de milhões de trabalhadores, nomeadamente na Inglaterra da Revolução Industrial. Vale a pena lembrar as injustiças sociais dessa época porque aí reside o epicentro da mudança vertiginosa que nos trouxe até ao ponto em que estamos (para o bem e para o mal).

Regresso, a esse propósito, à noção de “economia moral dos pobres”, que exalta o direito dos miseráveis à rebelião, conforme formulou o famoso historiador E.P. Thompson (Eighteenth-century English Society: Class Struggle Without Class?, 1978), no seu estudo sobre as revoltas populares na Inglaterra de finais do século XVIII. Uma “luta de classes sem classes”, num tempo em que a classe trabalhadora industrial era ainda embrionária, despojada de sentido de estruturação orgânica.

E foi também nessa época que um famoso clássico da economia, Adam Smith, se bateu contra um vírus corrosivo de então, na sua Teoria dos Sentimentos Morais (1759), ao exclamar que o desprezo pelos pobres e a admiração pelos ricos e poderosos é a maior corrupção dos costumes morais. Um juízo moral, para ser justo – alertava ainda A. Smith –, exige a capacidade de nos colocarmos no lugar dos outros, a começar pelos que nos são próximos, a fim de vermos as coisas pelos seus olhos. Ver pelos olhos do outro apela, por um lado, ao distanciamento que nos permite despir do nosso papel e, por outro, exige a proximidade íntima que nos oferece abrigo na sinceridade de um olhar ou na comoção de um abraço fraterno.

Ninguém conhece os contornos do novo capítulo, mas podemos especular. Uma possibilidade é o reavivar das velhas tendências, a intensificação das assimetrias, a primazia do mercantilismo, a hegemonia de um capitalismo predador, a supressão de direitos. Se isso acontecer, significará a entrega, mais uma vez, do benefício aos infratores do costume, a sociedade continuará a afundar-se no abismo, as clivagens intensificar-se-ão. Os projetos emancipatórios – eco-socialismo, lutas climáticas, social-democracia reinventada?... – não passam de utopias sem força. Porém, mesmo sem ideologias mobilizadoras, os novos denegados do século XXI (com mais ou menos plataformas digitais) podem protagonizar novas convulsões (sem rumo). Quando a promessa de bem-estar é contraditada pelas assimetrias de poder e de riqueza podem sempre ocorrer ações descontroladas. Seria bom que desta vez as instituições soubessem antecipar-se, pelo menos no espaço europeu. Mas as “rebeliões plebeias” podem ganhar novo ímpeto. O meu novo capítulo começa após o regresso às origens.


 
 
pessoas
Elísio Estanque



 
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