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04-05-2020        Público

Sabemos da história que as pandemias têm o poder de mudar regimes políticos e o funcionamento das sociedades. Foi assim com a peste negra e com outras pandemias que abalaram o mundo. É cedo para nos dedicarmos a exercícios de adivinhação sobre o impacto da covid-19 no nosso futuro, mas sabemos certamente que muita coisa já mudou sem que tivéssemos o tempo e o recuo suficientes para tomar consciência da densidade dessas mudanças.

1. Uma das áreas em que isso está a acontecer é nos sistemas de monitorização da parcela da população infectada e de todos os potenciais frequentadores de espaços adjacentes durante a sua mobilidade e confinamento. O capitalismo digital predispôs-se rapidamente a participar, de forma autónoma, ou colaborando com o Estado, na criação e desenvolvimento destes sistemas.

Diga-se que eles já existiam para efeitos de rastreamento de comportamentos de consumo, publicidade, criação de perfis e antecipação de comportamentos. A chamada sincronização dos telemóveis não é nada menos do que um controlo permanente do perfil e dos movimentos de cada sujeito que tem um smartphone e a transferência em tempo real desses dados para centrais de data mining que disparam em microssegundos ofertas de bens e serviços. O capitalismo digital já tinha, por conseguinte, o hardware e o software necessários a este tipo de operação. Já tinha integrado nos comportamentos socialmente aceites a ideia de estar permanentemente sincronizado, monitorizado e disponível para receber estímulos de natureza comercial, quer através dos sistemas de localização dos smartphones quer através de GPS offline.

Na China, os infectados com covid-19 foram impedidos de sair de casa por uma aplicação que os classificava com uma etiqueta vermelha e os monitorizava em permanência. Uma outra app de detecção automática também permitiu alertar as pessoas saudáveis quando estavam na proximidade de alguém infectado. A pandemia justificou o panóptico, que se estendeu a medidas de monitorização de toda a população, usando algoritmos de reconhecimento facial e de rastreio, combinados com o preenchimento em tempo real de informações sobre a autopercepção da saúde e a descrição de dados da mobilidade mais recente.

2. Entretanto, o problema da vigilância digital móvel que teve origem de forma massificada na China, Coreia do Sul e Singapura já chegou à Europa. Alguns países europeus, como a Alemanha, Dinamarca, UK e Espanha tomaram medidas de alcance diverso nesse sentido. A forma de penetração desta intrusão na vida privada, justificada inicialmente como forma de proteger a saúde e a vida das populações, mas que corremos o sério risco de ver alargado a todo o tipo de vigilância, como aconteceu nos últimos 30 anos com a omnipresença das câmaras de CCTV no espaço público, tem tido dois tipos de abordagem:

Hardpower: é o modelo “asiático” de vigilância, baseado num poder estatal autoritário e com débeis mecanismos institucionais de freios e contrapesos. Nestes casos, a medida foi imposta de cima para baixo aos cidadãos numa típica biopolítica estatal em que domina a mentalidade dos jogos de guerra modernos decididos à distância por algoritmos poderosos.

Softpower: é o modelo persuasivo de vigilância, baseado no poder sedutor das novas tecnologias, típico de uma relação de consumo em que os potenciais clientes são aliciados a participar através de estímulos e gratificações imediatas (por exemplo, vouchers), ou a usar as aplicações de vigilância como se de um jogo de busca e captura do “outro perigoso” (os Pokémons, os contaminados?) se tratasse. Nestes casos, a medida está a ser vulgarizada através do uso da gamementality que já estava generalizada numa parte da população. É uma biopolítica Pokémon Go.

Esta biopolítica assenta na hiper-realidade, na simulação e na indiferença emocional. Hiper-realidade e simulação porque a distinção entre a coisa real e a sua imitação, entre a localização das pessoas infectadas no ecrã do telemóvel e a pessoa real são abolidas. Umberto Eco argumenta que a hiper-realidade transporta para a experiência quotidiana características alucinatórias e irónicas típicas de uma sociedade de consumo. O consumidor é imerso em tecnologias de simulação cada vez mais alargadas: espaços de férias que imitam a sensação de exotismo; espaços fechados em regiões frias que reproduzem espaços luxuriantes de praias tropicais; espaços confinados que são ampliados por imagens simuladas que permitem jogar golfe no hotel ou andar de bicicleta em paisagens selvagens sem sair da comodidade do hotel; mapeamento de pessoas que reproduzem os seus movimentos e deslocações.

Neste estado de simulação permanente, que constitui o principal efeito da gamementality, aquilo que está geograficamente distante parece-nos muito familiar e o que está geograficamente próximo torna-se estranho. É este sentimento de estranheza do outro, sobretudo quando é um outro estigmatizado pela contaminação, que facilita e amplifica a indiferença afectiva e emocional. Confrontado com riscos incontroláveis, os indivíduos são absorvidos pela protecção do seu espaço privado e estilo de vida, como se estivessem a ser alvos de ataques. Essa experiência de estranheza provocada pela presença do outro no nosso espaço tivemo-la quase todos durante os momentos de mobilidade que experienciamos durante o confinamento. A mediação das tecnologias de simulação numérica apenas torna este efeito mais intenso e sempre à beira da incivilidade.

3. Analisemos o caso português à luz destes pressupostos. Em entrevista ao podcast Política com Palavra, o primeiro-ministro António Costa resumiu bem o que se estava a passar e definiu a opção, ao menos num primeiro momento, pelo softpower de vigilância. António Costa começou por recusar qualquer tipo de rastreio por georreferenciação para combater o novo coronavírus.

O primeiro-ministro aparenta ter consciência dos problemas que a vigilância digital e a geolocalização colocam ao funcionamento de uma sociedade aberta, democrática e em que ainda funcionam freios e contrapesos institucionais. Por isso, resguarda o Estado da iniciativa e do controlo desta medida intrusiva. A sua opção passa por deixar a iniciativa ao poder persuasivo do mercado – a que de forma deslocada chama “comunidade”, no qual deposita toda a esperança na aceitação da medida.

A estratégia tem todas as condições para vingar porque a gamementality fará o resto. Ao Estado parece estar reservado o papel de seguir aquilo a que o consumidor adere, numa lógica neoliberal de redução faseada da capacidade de exercício e controlo das liberdades básicas pelos cidadãos, que acontece desde há muito com o funcionamento desregulado dos mercados, mas que agora seria alargado à desregulação do acesso aos movimentos e à vida privada. A liberdade política dos cidadãos ficaria assim capturada pela “liberdade” do consumidor, justificando o futuro alargamento das medidas de vigilância.

Na verdade, a gamementality promovida pelo mercado alargado dos videojogos e das tecnologias de simulação tem feito mais pelo neoliberalismo do que dezenas de discursos dos neoliberais.


 
 
pessoas
Rui Gomes



 
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smartphones    geolocalização    população    democracia    sociedade    aplicações    estado