As crises tornam mais evidentes os limites e as desigualdades dos sistemas sociais. São analisadores que permitem diagnósticos crus. As dificuldades e as fracturas expostas do sistema educativo português desde o início da crise da covid-19, do pré-escolar ao superior, foi a demonstração límpida de quatro contradições que vêm do passado e sempre estiveram presentes.
A primeira diz respeito a uma escola que amplifica as desigualdades que nos diminuem. A alternativa do ensino diferenciado em função do ponto de partida de cada um tornou-se uma necessidade absoluta revelada pela crise.
A segunda tem aparência tecnológica, mas é sobretudo económica e social. O ensino à distância, o desigual acesso a computadores e à internet, a literacia digital, que não fora democratizada no passado, a diferente possibilidade de obter ajuda dos pais para a realização de tarefas escolares transformaram-se, num curto período, em barreiras intransponíveis para o acesso à educação.
A terceira vem do modelo pedagógico obsoleto que domina a escola desde o século XIX. Um sintoma do desagrado de há muito com o ensino colectivo, em que se ensinam muitos alunos como se de um só se tratasse, foi-nos dado pelas respostas ao questionário do OP.Edu: 65% dos estudantes do ensino superior consideram que os professores não estão preparados para o ensino não presencial. Sinal de que os efeitos negativos deste modelo novecentista de escola graduada se tornaram mais evidentes na sua transposição automática para o ensino não presencial. A ficção continua a ser a mesma de sempre: ver em todos os alunos de um grau/classe um só indivíduo médio capaz de aprender com base na informação do professor. Se é assim no ensino superior, a que acedem os mais favorecidos, é mais grave ainda nos outros níveis de ensino, social e economicamente mais heterogéneos.
A quarta foi exposta pelo logro da meritocracia baseada no exame. A ficção de um aluno médio que representa a totalidade só subsiste através do exame que cria uma tecnologia complementar: supõe-se que os alunos que transitam são os que estão em condições de receber um ensino colectivo no grau seguinte. Mas o exame também foi instituí¬do como forma de certificar o valor de cada um e de inserir esse valor na lógica performativa do mercado de trabalho capitalista. O poder de tenaz que vem de fora e de dentro do sistema educativo fez do exame o fetiche dos que sempre esconderam as desigualdades por trás do biombo supostamente neutral e objectivo dos resultados dos exames. O vírus desfez no ar a evidência de séculos, demonstrando que o mérito medido pelos exames está também dependente dos recursos económicos das famílias, do capital cultural que transmitem desde cedo aos filhos e dos bens culturais que têm à disposição. O esforço feito em todos os graus de ensino para realizar os exames, como se fosse possível nada mudar no que é essencial, conta-nos mais sobre a força deste arcaísmo do que qualquer estudo sobre o fraco uso dos modelos alternativos de avaliação formativa, centrados numa forte ligação à aprendizagem e sensíveis a pontos de partida e de evolução desigual dos alunos.