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19-04-2020        Público

Seremos capazes de aprender a lição? A violência do embate da covid-19 pode abrir caminho a novos modelos de funcionamento da economia e da sociedade? Não há qualquer garantia de que tal aconteça. Um interessante texto publicado há dias por José Gil reporta-nos a mutação em curso nas subjetividades pessoais que estarão a ser substituídas por subjetividades virtuais, desterritorializadas, através das redes digitas. No entanto, a encruzilhada em que nos encontramos no nosso isolamento caseiro não nos permite captar qual o efetivo alcance desta vertigem, nem mesmo se estaremos ou não a ser direcionados para um outro conceito de modos de vida e de trabalho. Teremos capacidades cognitivas para aceitar ou meios para construir um modelo de sociedade radicalmente diferente? Ou apenas sonhamos em regressar à normalidade, ao nosso habitual conforto burguês? É cedo para se compreender plenamente o que aconteceu, na sociedade, na economia, nas representações subjetivas de cada um de nós, e as possibilidades quanto ao nosso futuro comum.

É importante, desde logo, colocar em planos diferentes o papel das instituições e do poder político, por um lado, e as orientações e atitudes dos cidadãos, por outro, apesar da sua estreita interconexão. Limito-me aqui a refletir sobre o contexto europeu e português, muito embora o problema seja global. Os cenários possíveis estão nesta altura todos em aberto. Mas não haverá futuro se não surgirem líderes que se revelem à altura dos novos desafios.

Vem a propósito invocar a história, recordando que as grandes viragens e ruturas do passado ocorreram quando as lideranças e instituições ousaram romper com tabus instalados, como aconteceu com vários protagonistas que emergiram no pós-II Guerra Mundial, como por exemplo na implementação do Plano Marshall. Os verdadeiros líderes são os que conseguem por os interesses dos povos acima das divergências políticas, e nesse virar de página a democracia americana deu o exemplo, respondendo ao desafio gigantesco de reconstruir a Europa. Não se tratou nem de generosidade nem de caridade, mas sim de visão estratégica. Como sabemos, foi esse plano de ajuda (o equivalente, hoje, a 118 mil milhões de euros) que esteve na génese da União Europeia e da República Federal da Alemanha. E, apesar de todas as dificuldades e insucessos ao longo dos últimos setenta anos, duvido que a história da Europa tivesse sido melhor se os EUA se tivessem remetido ao seu reduto, deixando o continente europeu à mercê de outros interesses expansionistas. Em parte, resultado do temor face à ameaça comunista da URSS, o sucesso do projeto deveu-se principalmente à visão de homens guiados por altos valores democráticos e amantes da liberdade, como o presidente Harry Truman e o secretário de Estado que daria o nome ao plano, general George Marshall. Ele e o seu subsecretário (Dean Acheson) percorreram o país em 1947 a explicar aos americanos a importância daquele programa para a Europa e o mundo, mas também para os EUA, antes de ser aprovado pelo congresso (o que ocorreria em março de 1948).

No atual contexto europeu, uma variável indispensável que deve ser equacionada refere-se ao papel do Estado na economia e que modelo – o atual ou outro – é possível adotar na escala nacional e transnacional, sabendo-se que na UE elas são indissociáveis. De um lado, temos as forças e poderes de cada Estado-nação, e do outro as regras, tratados e negociações em curso na União. Ou seja, é necessário perceber se o projeto europeu vai em frente e sai reforçado – para já na resposta à crise sanitária, mas a curto prazo na definição de um plano económico integrado – ou se insiste no aprofundamento das divisões e assimetrias, caminhando para o colapso. Embora ciente das dificuldades, riscos e resistências que todos conhecemos, sou daqueles que prefere ver o copo meio cheio do que meio vazio. A acreditar num futuro com mais coesão e mesmo numa Europa Federal parece evidente que esse projeto não se define por decreto nem no segredo dos gabinetes de Bruxelas. Haverá chantagens, ameaças e ruturas; e no fundo tudo dependerá, em última instância, das opiniões públicas. Ou seja, da capacidade dos eleitores e dos movimentos da sociedade civil exercerem a necessária pressão sobre os atuais governos, partidos e instituições.

A realidade da pandemia, com toda a devastação de vidas humanas que está a causar (e também a destruição de milhões de empregos), trouxe ao de cima de forma brutal a ameaça de um inimigo saído da natureza que impôs uma inesperada limpeza ambiental sobre os destroços humanos que deixa pelo caminho. Para além da repentina reciclagem da qualidade do ar, o vírus invisível empurrou a humanidade para um acantonamento geral, a clamar pelas necessidades mais básicas. Se as lutas climáticas já eram uma causa agregadora e mobilizadora, em especial junto da juventude internacional, este regresso obrigatório à simplicidade, ditado pelo medo, deverá fortalecer a importância da ecologia na elaboração de programas de desenvolvimento futuros. Para tal, é necessário; 1.º), que a sociedade civil saída deste flagelo desperte para o que é realmente importante e que atenue alguns dos seus vícios mais arreigados (consumismo, individualismo, ambições desmedidas, etc.); e 2.º), que as famílias políticas existentes saibam concertar divergências e gerar consensos mínimos no combate aos problemas sociais e ambientais, de hoje e de amanhã. Para além da defesa do ambiente, dois poderosos inimigos da democracia (embora momentaneamente enfraquecidos) poderão contribuir para aproximar as esquerdas: o paradigma neoliberal que domina a economia global e a expansão dos nacionalistas de extrema-direita. Acresce que, como atrás referi, o princípio do Estado na sua dimensão redistributiva e social irá sair por cima na fase pós-pandemia que vai seguir-se.

Na sequência do que acabo de referir importa repensar, em diferentes escalas, duas componentes fundamentais: reindustrialização e regionalização. Um dos efeitos psicossociais deste confinamento forçado será inevitavelmente o valor atribuído aos bens de primeira necessidade, e daí decorre que algumas das atividades tradicionais básicas, como a agricultura, a pecuária ou o fabrico de pão, por exemplo, têm agora melhores condições de ser revalorizadas. Daí que, num país como Portugal, ou em regiões ainda pautadas pela proximidade do imaginário rural, a ligação à terra, o valor da entreajuda em economias locais onde o sentido de pertença é mais forte, tais atmosferas possam oferecer-se como contextos de sociabilidade mais amigáveis, em particular se considerarmos que o apelo das grandes concentrações urbanas, pelo contrário, deverá sair enfraquecido desta intensa experiência de distanciamento social. Para além do reforço da digitalização, reindustrializar e descentralizar são prioridades que a crise acentua ainda mais.

Em suma, se, como alertou José Gil, a contraparte da desterritorialização é uma reterritorialização na esfera do ciberespaço, se é verdade que a reinvenção da comunidade tenderá a ganhar forma, não creio que isso decorra em exclusivo das redes ditas virtuais. O território, o espaço local e a terra recuperam valor, inclusive como esferas de partilha. Assim, ainda que com a pandemia as plataformas digitais se desdobrem para novas e inesperadas dimensões da vida social, não deixam de ser meios para o encontro e não um fim em si. Podem ajudar a novas dinâmicas de intervenção e ativismo, mas não anulam a importância vital da interação direta. A empatia é o cimento da comunidade. E esta constrói-se mais na comoção humana de um olhar espontâneo do que pelo contacto anónimo de um ‘bite’ eletrónico. Mesmo quando todos têm no bolso a ligação ao mundo digital, os momentos mais calorosos e emocionais trazem as pessoas à janela, batendo em tachos, aplaudindo os profissionais do SNS ou cantando e dançando em partilha direta com o vizinho do lado ou o prédio da frente.


 
 
pessoas
Elísio Estanque



 
temas
sociedade    ciberespaço    democracia    UE