Estamos a viver a mais grave crise do sistema judicial português das últimas quatro décadas, desde que a Revolução do 25 de Abril de 1974 restaurou a democracia após quarenta e oito anos de ditadura. Do modo como for superada esta crise depende em boa medida o futuro da democracia portuguesa. Portugal integrava, até há pouco tempo, o leque de países onde a corrupção no judiciário era um não assunto. É verdade que os inquéritos às perceções dos cidadãos portugueses a respeito da justiça, realizados pelo Observatório Permanente da Justiça, em 1993, 2001 e 2013, e por organismos internacionais, caso do Flash Eurobarometer, Justice in EU, são consistentes quanto ao baixo nível de confiança e à insatisfação dos portugueses relativamente ao funcionamento dos tribunais. Mas, as fragilidades acumuladas, que fundamentam as representações negativas, dizem respeito sobretudo aos custos e à morosidade da justiça. Nem as perceções dos cidadãos, nem a opinião publicada, revelavam especial preocupação com a independência dos tribunais e ainda menos com a corrupção no judiciário. Sabemos hoje que se tratava de uma ilusão. Os factos recentemente conhecidos põem a nu que algo está muito podre no sistema judicial português, evidenciando práticas judiciárias inadmissíveis num Estado de direito democrático. Juízes de tribunais superiores (dois deles ex-presidentes do Tribunal da Relação de Lisboa) são suspeitos de distribuição fraudulenta de processos, escolhendo os juízes à medida de determinados interesses, de abuso de poder e de violação de regras estatutárias ao exercerem atividades, pelo menos num caso assumidamente bem remuneradas, que lhes estão proibidas. A posição pública, quer do presidente do Conselho Superior da Magistratura (CSM), que considerou os factos “de gravidade extrema e põe em causa um dos pilares do Estado de direito”, quer do presidente da Associação Sindical de Juízes ao exigir uma “operação de limpeza de grande envergadura” mostram o embaraço do poder judicial e a compreensão da gravidade do momento. Mas, para restaurar a degradação social da justiça é preciso que os poderes, judicial e político, na medida das suas competências, desenvolvam concertadamente um rigoroso programa de ação, atuante em dois planos distintos: individual (ação criminal e disciplinar contra os juízes suspeitos) e sistémico (auditoria ao funcionamento dos tribunais superiores e execução de medidas preventivas de práticas corruptivas).
A seriedade da situação não admite tacticismos, ocultações ou fugas para a frente. Assegurando todos os direitos e garantias de defesa, o CSM e os agentes responsáveis pelos inquéritos têm de dispor de meios humanos e materiais que lhes permita obter o cabal esclarecimento dos factos, de forma célere e eficaz, sabendo que os cidadãos não irão tolerar, nem dilações processuais, nem conclusões ineficientemente fundamentadas. No plano individual, os portugueses devem saber quais os processos instaurados de averiguação, disciplinares ou criminais, contra quem, quais as práticas em causa e quais os prazos previstos para a sua conclusão. No plano sistémico, impõe-se uma sindicância exaustiva e rigorosa, com a participação de elementos externos ao poder judicial, ao funcionamento dos tribunais superiores. Essa sindicância tem que responder, publicamente e em curto prazo, às seguintes questões: qual a verdadeira dimensão do problema? Confirma-se ou não a narrativa emergente de que se trata casos isolados? Quais os processos judiciais envolvidos e qual impacto de tais práticas? Quais foram os fatores facilitadores ou potenciadores (ou a ausência deles) de práticas corruptivas? Está verdadeiramente assegurado, em todos os processos de recurso, o direito ao julgamento coletivo?
Mas, a auditoria não é um fim si mesmo. Deve ser encarada como instrumental ao apuramento de responsabilidades individuais e coletivas e ao desenvolvimento de uma agenda estratégica para a prevenção da corrupção, que inclua as necessárias medidas legais, organizacionais, procedimentais ou de formação. É importante não perder de vista que, ao contrário da mensagem dominante na comunicação social, os indícios de práticas corruptivas não foram detetados por qualquer mecanismo de controlo interno, mas no âmbito de um processo-crime: a “operação lex”. E não deixa de ser paradoxal que responsáveis do poder judicial se mostrem perplexos com violações estatutárias ao mesmo tempo que os implicados declaram que a atividade profissional paralela, exercida há vários anos, era amplamente conhecida dos seus pares. O que indicia a existência de modelos de prestação de contas frágeis e de uma cultura judiciária muito tolerante a falhas de ética e de integridade. Duas ideias principais devem orientar essa agenda. A primeira pressupõe a adoção, independentemente da qualificação jurídica dos factos para fins criminais, do conceito amplo de corrupção proposto pelo Conselho Consultivo dos Juízes Europeus (Opinião n.º 21, de 2018). De acordo com essa perspetiva, qualquer conduta desonesta, fraudulenta ou antiética de um juiz, com o objetivo de obter um benefício para si ou para um terceiro, deve ser tratada como corrupção. A segunda diz respeito ao reforço dos mecanismos de transparência e de prestação de contas (interna e externa) do judiciário. É reconhecido que os sistemas judiciais com elevado grau de atuação desses mecanismos estão melhor salvaguardados de práticas corruptivas. Quando o problema atinge em cheio os tribunais superiores, os órgãos de governo do judiciário têm a obrigação democrática de promover um debate sério e verdadeiramente consequente a esse respeito. Impõe-se, desde já, a tomada de medidas facilitadoras do escrutínio público de procedimentos e decisões dos tribunais superiores.
O poder judicial e os muitos magistrados que com elevada probidade ética e profissional servem o sistema judicial português sem se servirem dele têm exigentes desafios pela frente. Facilmente se compreende o perigo para a sociedade e para a democracia se não forem capazes de os superar. Saberemos nos próximos meses se 2020 foi o ano de todos os perigos ou o ano de restauração da confiança na justiça portuguesa.