O artigo de opinião de José Ribeiro e Castro, publicado a 15 de Fevereiro, retomando uma conversa com Luís Aguiar-Conraria a propósito da existência de racismo na sociedade portuguesa, interpelou-me como cidadã e historiadora.
Ribeiro e Castro faz uma espécie de profissão de fé no luso-tropicalismo, que entende sobretudo como intenção, programa ético, projecto de futuro. Não me cabe discutir ou discordar do seu ideal, mas gostaria de tecer alguns comentários com base na investigação que comecei a desenvolver há mais de 20 anos sobre a criação do luso-tropicalismo pelo cientista social e intelectual brasileiro Gilberto Freyre e os seus usos políticos durante o Estado Novo.
A pesquisa que realizei mostrou que a instrumentalização das ideias de Freyre pelo regime autoritário e imperial servia a sua necessidade de legitimação internacional, face à crescente contestação anticolonial na Organização das Nações Unidas e às lutas travadas pelos movimentos independentistas africanos a partir de 1961. Quando, em 1955, a UNESCO preconizava a introdução do tema da tolerância racial nos sistemas de ensino, Adriano Moreira, no quadro do comité interministerial para a Comissão de Cooperação Técnica na África ao Sul do Sahara, afirmou que “o tradicional espírito de não-discriminação português não torna necessário que se ensine nas nossas escolas a tolerância nas relações raciais – mas talvez houvesse interesse em que, nos ensinos primário e médio, se pusesse mais em relevo a nossa tradição anti-racista”.
Bastava realçar essa suposta verdade. Quando Jorge Dias ou Orlando Ribeiro, em missões de estudo a Moçambique e a Angola, detectaram sinais de racismo nas sociedades coloniais, foi mais fácil concluírem que se tratavam de influências estrangeiras, estranhas ao tradicional “modo português de estar no mundo”. Verifiquei que o luso-tropicalismo não foi só um instrumento diplomático ou um quadro de referência para cientistas sociais; foi uma poderosa “cola” identitária para consumo interno, agregando gente politicamente diversa. O fim do império não desfez o trabalho de mentalização realizado pela ditadura. A democracia não se inquietou com a persistência do luso-tropicalismo no imaginário nacional.
Ribeiro e Castro apresenta-se como a personificação do modo como o luso-tropicalismo foi apropriado pelo Estado Novo, a partir de meados da década de 1950. É o resultado consciente e pacificado da eficácia do aparelho político-ideológico do Estado Novo (inclusive da censura aos meios de comunicação social) na propagação de uma imagem essencialista do povo português com traços positivos, na exaltação de uma suposta excepcionalidade da colonização portuguesa, e na inculcação de uma norma (mas não de uma prática) anti-racista.
O que me preocupa no artigo e na postura bem-intencionada de Ribeiro e Castro é que coloca o assunto do domínio da auto-representação e da crença e não da história e da política. A naturalização da suposta bondade dos portugueses é ingénua e arbitrária. Ribeiro e Castro afirma que os portugueses “são bonzinhos”, mesmo havendo evidências de discriminação racial na sociedade portuguesa, mesmo havendo evidências de que os negros são alvo de violência, ofensas e insultos no seu quotidiano, se confrontam com mais obstáculos no acesso à habitação, à educação, ao emprego, mesmo havendo evidências de que em Portugal as desigualdades sociais são agravadas pela origem étnica. Quando se entende que o racismo é uma manifestação pontual e exterior à cultura portuguesa, não se aceita que o problema existe “entre nós”, não se deixa espaço para a sua ampla discussão nem para a criação de políticas públicas para o combater. A retórica dos afectos e da irmandade lusófona ou a autoridade da suposta tradição histórica não conseguiram criar uma sociedade mais igual, justa e tolerante. Podemos passar à política?