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12-02-2020        Público

Compreender é a mais difícil e radical das tarefas, em particular quando, como agora, a incerteza, o risco, a precariedade, a intolerância e as violências imperam. Compreender exige vários procedimentos, morosos e difíceis: distanciamento face à eclosão dos acontecimentos; capacidade de desacelerar, de maneira a ganhar tempo para voltar com mais profundidade aos fenómenos; colocar em relação todas as componentes, que frequentemente interagem entre si; contextualizar, para perceber o que, por vezes, permanece invisível; ativar o pensamento crítico, que cria uma consciência sobre o que nos rodeia; relativizar, porque tudo acontece num tempo e num espaço que são variáveis e que desafiam as verdades absolutas; evitar os juízos de valor e as tentações normativas de julgar, mesmo antes de tentar compreender; superar quer o preconceito, quer a vontade de agradar aos interlocutores.

Falamos, é claro, da sociologia, cuja reunião magna, em Portugal, se realizará em Faro, de 6 a 8 de Julho, na Universidade do Algarve e sob a égide da associação portuguesa de sociologia, uma das maiores do mundo.

Podemos concretizar este afã em vários exemplos. Pensemos em como os problemas de saúde escapam frequentemente ao mero diagnóstico. Existem hoje múltiplos estudos sociológicos que mostram como as situações de pobreza e a desigualdade extrema, ou o impacto de grandes obras públicas que desalojam milhares de pessoas, provocam dor, sofrimento e stress, mas de uma maneira difusa, que o corpo exprime, embora de uma forma frequentemente silenciosa (o corpo fala a seu modo). Uma terapia que ignore a sociologia, os quadros sócio-culturais da experiência humana e a exposição a processos de violência social e simbólica, dificilmente conseguirá diagnosticar e tratar estas pessoas ou fá-lo-á de um modo errado, insistindo, por exemplo, na indução massiva de psicofármacos.

Outro exemplo, ainda mais controverso: a multiplicação de casos de radicalização de jovens europeus com origens familiares extra-europeias e que culmina, por vezes, em episódios de terrorismo, deve levar à punição e condenação de tais atos. De igual modo, devem ser descobertas e desmistificadas as redes que os induzem e os manipulam. Mas também deve ser compreendida a génese do problema, caso contrário enchem-se as prisões, multiplicam-se as vítimas e nada se resolve. Perceber como a economia e a identidade operam em contextos de precariedade, forjando modos de vida perpassados pela humilhação, a degradação, a desestruturação habitacional e familiar, a ausência de referências simbólicas, a descrença nas instituições (escola, organismos do Estado, partidos políticos), gerando uma engrenagem de desespero, medo e raiva, onde se torna impossível prever, planear ou desejar o futuro, não é desculpar assassinos, é antes perceber as sociedades que produzem tais indivíduos.

Não há pessoas isoladas, por mais que se sintam sós. Agimos sempre por referência a outros e a padrões de conduta que julgamos aceitáveis e expectáveis. Existir é interagir, percecionar e comunicar, organizar a realidade e situarmo-nos no mundo, às suas diferentes escalas: o bairro, a vila ou cidade, o país e o mundo. A sociologia é pluriescalar, de várias maneiras: pela localização e dimensão dos territórios com os quais nos relacionamos (tantas vezes de uma forma virtual, mas com efeitos bem reais – o que se passa quando estamos no ciberespaço tem implicações materiais e objetivas nos mundos da vida quotidiana), mas também porque trabalha no vaivém constante entre o mais micro (o individual) e o mais macro (as grandes estruturas, invisíveis mas incarnadas nas pessoas, gerando oportunidades e desigualdades, alavancando afirmações e opressões).

Compreender com a sociologia, em suma, é uma das mais estimulantes maneiras de estarmos no mundo, de nos comprometermos com os outros, de não desistirmos de encontrar as causas dos fenómenos que, em múltiplas combinações, produzem as pessoas que os produzem.

Desistir seria fácil, até porque o misto de espetáculo, opinião e entretenimento que hoje são hegemónicos na nossa esfera pública convidam à dispersão e ao esquecimento.

Mas trilhar os caminhos difíceis é a decisão mais certa para, compreendendo-o, mudarmos o mundo.


 
 
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Paula Abreu



 
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