Há cerca de cem anos atrás vários espectros assaltavam a Europa: a guerra, o desemprego e a fome, o comunismo, o fascismo, mas um século passado as mesmas ameaças e esperanças parecem ressurgir. A região da Alemanha (ex-Leste) onde me encontro evidencia ainda resquícios do antigo regime soviético, onde o neofascismo cresce. Karl Marx também andou por cá, tendo aqui concluído o seu doutoramento em 1841 (Universidade Friedrich-Schiller, em Jena). As referências, a influência, enfim, o “espectro” de Marx voltou a contaminar o campo universitário e a política do nosso tempo, o que, aparentemente, se prende com a crise estrutural do capitalismo à escala global. Segundo bases de dados da “Web of Science (1975-2017)”, o número de artigos e títulos académicos que referem o nome “Marx” ou “marxismo” aumentou exponencialmente ao longo daquele período (in Revista TripleC, Marx@200, 2018).
Ao contrário do que muitos pensam acerca de Marx, a sua teoria é tudo menos simples e linear. O pensamento e teorias do filósofo alemão caracterizam-se pela versatilidade e complexidade da sua obra. Vale a pena enumerar algumas das suas linhas de análise: a visão sistémica do capitalismo centrada na luta de classes, na revolução socialista e no papel do proletariado como vanguarda (digamos que o seu registo mais vulgarizado, o do Manifesto); a perspetiva histórica sobre a acumulação primitiva no desenvolvimento do capitalismo; os processos produtivos na criação de mais-valias, salário, preço e lucro; a análise minuciosa da economia, dos circuitos do capital financeiro e do papel das crises cíclicas do capitalismo; o desenvolvimento tecnológico das forças produtivas; a teoria da alienação, etc., etc. No plano político, pode dizer-se que a acutilância e capacidade premonitória da sua teoria quanto à resiliência e contradições do capitalismo foi genial, e permanece largamente atual, enquanto a sua previsão quanto à luta revolucionária do proletariado pelo socialismo (e o seu papel como vanguarda política) se revelou desajustada perante o avanço e consolidação do sistema capitalista e a impressionante segmentação da classe trabalhadora na atualidade.
Considerando, por exemplo, a centralidade do conceito de “classe”, pode dizer-se – na linha de Erik Olin Wright – que, em torno do legado de Marx, se desenharam correntes diversas, que vão do “marxismo ortodoxo" (para quem a luta de classes entre o operariado e a burguesia é o motor da história e a sociedade socialista é um objetivo viável e inquestionável), passando pelos “neomarxistas" (para quem a classe é ainda um conceito central e o socialismo uma possibilidade, embora longínqua), até aos “pós-marxistas" (para os quais a luta de classes deu lugar às lutas identitárias e a utopia socialista é um horizonte tão improvável como qualquer outro sistema, emancipatório ou autoritário). Entre as vertentes inscritas na teoria marxista ocorreram ao longo do último século profundas reconceptualizações: a teoria da evolução histórica perdeu credibilidade, tal como o próprio modelo “socialista”, com a queda da ex-URSS. Tornou-se mais pertinente pensar a transformação social com base na noção de “possibilidades históricas” em vez da crença no princípio evolucionista (esclavagismo-feudalismo-capitalismo-socialismo-comunismo), um dos pilares dogmáticos do velho marxismo-leninismo. Acresce que outros indicadores de status – como a educação, o capital cultural, o prestígio, etc. –, tal como os processos e trajetórias de mobilidade social, foram igualmente integrados nas análises de classes de pendor marxista.
No entanto, a teoria da emancipação manteve a sua força como fonte inspiradora de movimentos progressistas contra as injustiças do capitalismo, em busca de novas utopias. Diversas correntes e sensibilidades do campo marxista e pós-marxista contribuíram para a atualização deste paradigma, rompendo com as velhas premissas do determinismo económico, as dicotomias estruturalistas como a que opõe a “base” (a economia) à “superestrutura” (a política ou ideológica), para abordagens mais abertas em que os antagonismos de classe (dos “interesses” de classe) deixam de ser vistos como causalidades simples (determinadas pelas relações de produção e a “consciência de classe”) para se conjugarem com subjetividades de sentido ético e valores morais. É nessa linha que se situa o célebre sociólogo marxista atrás citado (Erik Olin Wright, que este mês iremos homenagear em Coimbra) quando afirma que “o puro argumento fundado no ‘interesse de classe’ não se adequa ao século XXI e na verdade nunca foi inteiramente adequado” (How to be an Anti-Capitalist in the 21st Century, 2019). Um exemplo famoso disso mesmo reporta-se ao amigo de Marx, Friedrich Engels, que renunciou aos seus “interesses de classe” para se por ao lado do proletariado inglês, precisamente na base de imperativos morais e sentido de justiça social. Os exemplos multiplicam-se, bastando olhar em volta.
Questionando as teses que sobrevalorizam o poder estrutural do sistema capitalista, um outro cientista social americano, Fred Block (Capitalism: The Future of an Illusion, 2018), discute, entre outros argumentos, o da futilidade – isto é, a ideia de que no capitalismo as reformas acabam bloqueadas ou canibalizadas pela estrutura do sistema e dos poderes que o controlam. Invoca múltiplos exemplos a mostrar que tais teses foram desmentidas pela história, desde meados do século XIX até 1968, período em que se verificou uma sinergia virtuosa entre os setores reformistas e os que viam nessas lutas apenas uma etapa para consciencializar a classe trabalhadora para a revolução. Ou seja, ocorreu um largo ciclo de transformações em que a luta de classes anticapitalista foi vitoriosa porque, paradoxalmente, ao proclamar o socialismo, transformou o capitalismo, alcançando as mais profundas conquistas emancipatórias (direitos sociais, redução do horário de trabalho, direito a férias, melhorias salariais, etc.) para a classe trabalhadora, no quadro do Estado social.
É um facto que, passados os chamados “30 anos dourados” (1945-1975), o capitalismo organizado foi ultrapassado pela globalização neoliberal, e o mundo voltou a ser marcado pela incerteza, pela intensificação das injustiças, pelo aumento das desigualdades e abriram-se novas clivagens e crispações na sociedade. Os sinais de entropia generalizada do sistema económico justificam a necessidade da análise crítica, do pensamento alternativo e, para muitos, renasceu a esperança de superação do sistema capitalista. Marx ganhou uma nova vida, renascido das cinzas para onde foi (precipitadamente) remetido com a implosão do regime soviético. A sua dimensão emancipatória e utópica continua poderosa.
Mas, embora a reforma do capitalismo possa sempre ocorrer na sequência de ações revolucionárias, não é inevitável que isso suceda. O sistema pode transformar-se pela ação conjunta dos movimentos sociais – direta ou indiretamente expressão de lutas de classes, visto que, ao lado da revolução digital e tecnológica, a concentração de riqueza nos mais ricos continua a basear-se em larga medida na especulação financeira, na fuga aos impostos, na estagnação salarial da força de trabalho e, portanto, na exploração – e da política institucional num processo onde, mais do que uma vanguarda esclarecida, é porventura na retaguarda e na pulsão identitária dos denegados e precarizados que reside a chave dos avanços civilizacionais (ou retrocessos). Vivemos tempos de incerteza onde o “anticapitalismo” pode confundir-se com “antidemocracia”. Não sabemos qual das tendências em curso poderá vingar, se as que emanam da conjugação entre a vontade de rebelião e a ética solidária e humanista, ou antes as que obedecem à retórica populista e neofascista. Para o campo da esquerda, o espectro de Marx não pode ser sinónimo de messianismo, mas a superação (progressista) do capitalismo terá de ser sinónimo de socialismo democrático.