Algures em 1997, no fim de um julgamento nos juízos cíveis de Lisboa, a saudosa advogada Elza Abreu veio ter comigo para me dizer, com aquele seu ar maroto: “o senhor doutor julga como as mulheres”. Aquilo intrigou-me e quis saber a diferença.
“Os homens ouvem a primeira testemunha, acham que já perceberam tudo e não querem mais perguntas; as mulheres chegam à última testemunha, parece que ainda não perceberam nada e não param de fazer perguntas” – respondeu ela a sorrir. “E no fim, quem é que acerta mais senhora doutora?” – questionei, divertido com o rumo da conversa. E ela, a rematar a brincadeira: “Erram todos por igual!”.
À época, a entrada das mulheres nas magistraturas tinha apenas 20 anos e a feminização dos tribunais estava ainda no início, mas a brincadeira daquela advogada interpelou-me. Haverá mesmo uma diferente maneira de julgar no feminino e no masculino? Embora seja intuitivo pensar que sim, não conheço trabalho científico que ateste com segurança se há diferenças, quais são e qual é o seu impacto no processo da decisão judicial proferida por homens e mulheres.
O Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra desenvolveu há anos algum trabalho de pesquisa, focado, sobretudo, na análise das representações sociais do fenómeno (As mulheres nas magistraturas: Uma análise das representações sociais, Madalena Duarte, Ana Oliveira, Paula Fernando e Conceição Gomes).
Os resultados do inquérito, assumidamente exploratório, foram inconclusivos. Se, por um lado, para as pessoas inquiridas, magistrados e magistradas possuíam as mesmas capacidades fundamentais para o exercício da função (autoridade, imparcialidade e objectividade, o que parecia apontar para a irrelevância do género como factor diferenciador), por outro lado, não deixaram de referir certos aspectos que consideravam distintivos das características femininas, como a maior sensibilidade e atenção ao contexto social. Um total de 35% dos inquiridos consideraram que os homens não tinham tanta sensibilidade para julgar questões sociais como as mulheres e 56% responderam que as mulheres estavam em melhores condições para tratar de casos de família e menores (The Feniminization of the Judiciary in Portugal: Dilemmas and Paradoxes, Ultrecht Law Review, das mesmas autoras).
Em 2002, quando desempenhava funções no Conselho Superior da Magistratura, chegou lá uma carta de um senhor a pedir que designassem um juiz homem para o seu caso porque – dizia ele – as mulheres são muito emotivas e ficam com os humores alterados no período da menstruação.
Não há muitos meses, a imprensa noticiou também um caso em que o advogado teria considerado que a juíza do processo, em que um homem tinha sido condenado por violar a filha, não seria tão imparcial quanto um juiz, por ser mulher e mãe. Presumo que por esse país fora terão existido pontualmente outros disparates do mesmo calibre destes. Porém, valha a verdade, é justo dizer que a sociedade portuguesa aceitou tranquila e naturalmente a crescente hegemonia feminina nos tribunais. As juízas das primeiras gerações, que há mais de 30 anos passaram pelos tribunais de província, em contextos sócio-culturais essencialmente conservadores e profissionais estruturalmente masculinos, não se queixam de terem sido discriminadas ou olhadas de lado pelas populações e pelas comunidades de trabalho em que se inseriram.
Os Estados Unidos da América foram pioneiros na chegada das mulheres a cargos judiciais. Esther Hobart Morris, foi a primeira juíza em todo o mundo, no ano de 1870, em South Pass City, uma pequena cidade mineira no Wyoming com 2000 habitantes, maioritariamente homens que se embebedavam nos saloons e frequentavam bordéis de prostituição. A imprensa da época divertiu-se por haver uma juíza mulher e no dia do primeiro julgamento não achou tão importante focar-se no seu trabalho como na roupa que ela usava: vestido de chita, xaile de lã, fita verde a prender o cabelo e gravata verde ao pescoço. Mas Esther Hobart Morris estava bem consciente do facto de estar a desbravar terreno. Numa carta publicada depois de cessar funções, escreveu: “as circunstâncias tornaram a minha posição como juíza um teste à capacidade da mulher para ocupar cargos públicos; sinto que meu trabalho foi satisfatório” (Overlooked No more: She Followed a rail to Wyoming. Then She Blazed One, Jessica Anderson, New York Times).
Na Europa, esse movimento de entrada das mulheres nos tribunais iniciou-se na Noruega, em 1913, e foi-se estendendo gradualmente ao longo da primeira metade do século XX: Áustria (1947), Bélgica (1937), Dinamarca (1933), Espanha (1936), Estónia (1936), Finlândia (1930), França (1946), Alemanha (1927), Itália (1965), Letónia (1933), Lituânia (1924), Holanda 1947), Noruega (1913), Polónia (1929), Roménia (1945), Reino Unido (1920), Rússia (1917), Suécia (1937) e Turquia (1930).
Nos outros continentes o fenómeno foi muito mais tardio, tirando excepções como a África do Sul (1969), Brasil (1954), Argentina (1955), Austrália (1920), Canadá (1943), Cuba (1926), Índia (1937) e México (1926).
Em Portugal chegou tarde, por razões sobejamente conhecidas. Só em 1974, com o Decreto-Lei 251/74, os cargos nos tribunais e no Ministério Público foram abertos às mulheres. A primeira juíza portuguesa, Ruth Garcês, entrou na carreira em 1977 e foi também a primeira a chegar a desembargadora, em 1993.
Hoje, o número de juízas nos tribunais portugueses está perfeitamente em linha com a tendência europeia. Segundo o último relatório CEPEJ, que avalia os sistemas judiciais dos 47 países do Conselho da Europa, a média, no total de juízes profissionais em cada país, é de 47% de homens e 53% de mulheres, sendo, respectivamente, de 43% e 57% na primeira instância, 50% e 50% da segunda instância e 63% e 37% nos tribunais supremos (European Comission for the Efficiency of Justice, CEPEJ Studies nº 26, 2018 Edition).
Em Portugal, o número de juízas, no total das duas jurisdições, comum e administrativa e fiscal, atinge 60,37%: 60,03% nos tribunais judiciais e 62,23% nos tribunais administrativos e fiscais. Na primeira instância, as mulheres representam 68,51% do número total de juízes: 68,7% nos tribunais judiciais e 67,27% nos tribunais administrativos e fiscais. Na segunda instância, há 41,33% de desembargadoras: 40,67% nas Relações e 47,91% nos Centrais Administrativos. Nos dois tribunais supremos, há 28,04% de juízas conselheiras: 26,22% no Supremo Tribunal de Justiça e 33,33% no Supremo Tribunal Administrativo (dados de Novembro de 2019, dos quadros judiciais do CSM e CSTAF).
Estes números são consequência de um sistema de ingresso na carreira em que, de há vários anos para cá, predominam largamente as mulheres. Se no 1º curso de formação do Centro de Estudos Judiciários, em 1980, houve apenas 25% de auditoras de justiça candidatas a juízas, a situação inverteu-se completamente. Olhando para os últimos 10 cursos de ingresso, desde 2009, vemos um predomínio avassalador no número de mulheres candidatas a juízas: 76% no 27º curso, 66% no 28º curso, 83,63% no 29º curso, 70% no 30º curso, 60% no 31º curso, 87,71% no 32º curso, 66,66% no 33º curso e 75% no 34º curso (Quem são os futuros Magistrados? Centro de Estudos Judiciários). A manter-se esta tendência, como tudo indica que sucederá, no fim da década que hoje começa, a percentagem de mulheres juízas nos tribunais deverá rondar os 80%.
Nos cargos de gestão e representação dos juízes, os números são ainda diferentes, mas a crescente presença feminina é também visível e natural. Na primeira instância, em ambas as jurisdições, os 26 lugares de presidentes de tribunais são ocupados por 15 juízes e 9 juízas, que representam 34,6% do total. Na segunda instância, nas duas jurisdições, os 16 cargos de presidentes e vice-presidentes nos Tribunais da Relação e nos Tribunas Centrais Administrativos são ocupados por dez homens e seis mulheres, que representam 37,5%, sendo uma presidente e cinco vice-presidentes. Nos tribunais supremos, os seis cargos de presidentes e vice-presidentes são ocupados por três juízes conselheiros e três juízas conselheiras, que representam 50% do total, sendo uma presidente e duas vice-presidentes.
No Conselho Superior da Magistratura e no Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, desempenham funções de gestão e disciplina 11 juízes eleitos pelos pares, dos quais 5 são homens e 6 mulheres, que representam, assim, 54,5%.
Na Associação Sindical dos Juízes Portugueses, no total dos 67 membros eleitos como efectivos e suplentes pelos 2300 associados, há 30 homens e 37 mulheres, que representam 55,22% dos cargos: 45,65% dos efectivos e 76,19% dos suplentes.
Temos, pois, como conclusão segura e irrefutável, que a carreira judicial cumpre, com vantagem sobre muitas outras carreiras profissionais, o objectivo da igualdade de género no acesso às carreiras públicas, com números só superados nas funções de docência no ensino básico e secundário, de enfermagem e nas conservatórias, registos e notariado (Relatório sobre o Progresso da Igualdade entre Mulheres e Homens no Trabalho, no Emprego e na Formação Profissional, CIG, 2018).
No que respeita ao asseguramento de condições de igualdade na progressão na carreira, estão identificados alguns constrangimentos no sistema de inspecções e classificação dos juízes e juízas que se ausentam do serviço por gozo de licenças de parentalidade ou baixas por doença, sendo inegável que afectam predominantemente mulheres. No entanto, e sem prejuízo de melhor análise, os dados disponíveis não parecem sustentar evidências de qualquer tipo de discriminação no aspecto decisivo da atribuição da classificação máxima de “muito bom”, que é essencial progredir na carreira. Nos 162 juízes de primeira instância transferidos nos tribunais judiciais em 2019, classificados com muito bom, 111 eram mulheres, o que corresponde a 68,51% do total. Nesta amostragem, bastante significativa, a percentagem de mulheres classificadas com “muito bom” coincide com a percentagem de mulheres juízas, o que parece demonstrar que o género não influi na atribuição da classificação máxima e que, consequentemente, juízes e juízas estão num plano de igualdade quando chega o momento da promoção aos tribunais superiores (dados do site do CSM).
Essa conclusão encontra igualmente sustentação nos dados mais recentes, relativos às promoções aos tribunais superiores. Em todos os oito concursos curriculares de acesso às Relações, desde 2012, foram promovidos 229 juízes, sendo 115 desembargadores e 114 desembargadoras, que representam 49,7% do total. Por razões geracionais, à medida que os anos passam e as juízas vão adquirindo a antiguidade que permite aceder à promoção, verifica-se um aumento constante do número de mulheres promovidas a desembargadoras nos tribunais de recurso. No 1º concurso curricular, em 2012, em 20 juízes promovidos, apenas 4 eram mulheres, representando 20% do total. No 8º curso curricular, em 2019, as juízas promovidas foram 23, representando 65,7% das 35 vagas preenchidas. Neste concurso foram promovidas 51% das juízas que se candidataram e 50% dos juízes (dados do site do CSM).
Os números das promoções ao Supremo Tribunal de Justiça mostram a mesma tendência. Nos últimos quatro concursos, desde 2008, há um aumento constante do número de desembargadoras que atingem a antiguidade suficiente para se candidatarem ao concurso e que são graduadas na primeira metade da tabela, com possibilidade mais efectiva de promoção. No 12º concurso curricular, em 2008, em 54 desembargadores concorrentes, apenas havia uma mulher (1,85%), que veio a ser graduada em 4º lugar. No 13º concurso curricular, em 2011, em 44 desembargadores, sete eram mulheres (15,90%), 3 das quais foram graduadas na primeira metade da tabela, nos 2º, 7º e 14º lugares. No 14º concurso curricular, em 2014, em 29 desembargadores, oito eram mulheres (27,58%), tendo duas sido graduadas na primeira metade da tabela, em 5º e 12º lugar. No 15º concurso curricular, em 2017, em 34 desembargadores, 11 eram mulheres (32,35%). Foram graduadas na primeira metade da tabela seis juízas desembargadoras, em 1º, 4º, 5º, 9º, 12º e 16º lugar. Nesta última lista de juízas e juízas graduados para a promoção, foram até ao momento promovidos 25, dos quais dez são mulheres e 15 homens. Portanto, atingiram a promoção 90,9% das mulheres que se candidataram e 65,2% dos homens que se candidataram (dados do site do CSM).
O que nos mostram estes dados? Três coisas:
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primeiro, não há qualquer discriminação de género, desfavorável às mulheres, no acesso à carreira judicial – ao contrário do que ainda acontece noutros países;
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segundo, não há evidência sustentada nos dados conhecidos de que as mulheres juízas tenham um tratamento desfavorável na atribuição da classificação de serviço mais decisiva para a progressão na carreira e promoção aos tribunais superiores;
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terceiro, o menor número de juízas promovidas aos tribunais de recurso, verificado até ao momento, é resultado da sua chegada tardia à profissão e de não terem ainda, em número suficiente, adquirido antiguidade suficiente para concorrerem às promoções.
E os que não nos mostram? Uma coisa: se, para além do cumprimento dos objectivos de igualdade e não discriminação de género, que é uma regra intrinsecamente importante e só por si valiosa, haver mais mulheres ou homens nos tribunais faz, afinal, alguma diferença, no modo como os juízes, individualmente e no seu todo, procedem e julgam. Esta é, também, uma questão relevante, que importa estudar e aclarar.
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O autor é Presidente da Direcção da Associação Sindical dos Juízes Portugueses