9 de novembro de 1989. Anoitecia e eu começava a jantar quando tive a invulgar sensação de estar a viver em direto a História. O televisor estava ligado e pude então assistir à «primeira revolução televisionada». Diretamente das ruas de Berlim para os lares do planeta, o Muro de betão erguido em 1961 e a ordem mundial que ele simbolizava desfaziam-se às mãos de uma multidão eufórica que não sabia aquilo que se seguiria, mas parecia possuída de uma consciência clara do que não desejava. Projetado a partir daquele momento, as convulsões do biénio seguinte levariam ao fim dos regimes europeus do «socialismo realmente existente», terminando em 26 de dezembro de 1991 com a dissolução formal e definitiva da União Soviética. Era o desabar do mundo vivido e observado por várias gerações.
Quem tenha ainda uma memória da Guerra Fria recordará que esse momento pareceu saído do nada e conter mesmo algo de sobrenatural. Agora a décadas de distância, alguma historiografia tem revelado que existiam sinais prévios dessa transformação, que aqueles regimes se afundavam numa crise económica e social sem saída, que as sociedades sobre as quais se erguiam se atolavam em contradições e desequilíbrios, que a larga maioria dos intelectuais, dos artistas e da juventude, mesmo a juventude operária das grandes cidades, já nada esperavam de governos centralistas bloqueados e sustentados apenas pelos mecanismos de repressão. Naquele momento, porém, décadas de afirmação da «cortina de ferro», para usar a expressão de Churchill, e de separação profunda entre dois blocos antagónicos, apoiados na exibição da força à escala universal, haviam criado a falsa ideia de que a ordem bipolar era imutável e se havia estabelecido «para sempre».
Em Portugal, a dimensão anticomunista do Estado Novo tinha ampliado essa ideia de um planeta dividido em duas partes incomunicáveis. Recordo bem a transmissão de A Cortina Rasgada, o filme de Alfred Hitchcock estreado em 1966 e, ao contrário do então habitual, de imediato transmitido pela RTP. Dele emergia a imagem de um universo justo e formalmente livre em luta contra outro, representado como negro e repressivo, mas sabe-se hoje que a demonização da imagem do outro era feita de idêntica forma de ambos os lados. Por isso, e apesar da distensão iniciada pouco antes por Gorbatchev, o que ocorreu em Berlim naquela estranha noite de novembro pareceu ter tanto de incompreensível quanto de impossível.
O que aconteceu depois está em boa parte por contar. As primeiras transformações a leste foram no sentido da construção de um mundo supostamente «normal», liberto da repressão e da censura, que tinha como modelo a democracia representativa, antes qualificada como «burguesa». Um outro filme, Adeus Lenine!, de Wolfgang Becker, estreado em 2003, centrava-se na história dupla de uma mulher militantemente prosélita do regime da ex-RDA, que tem um AVC antes da Queda do Muro e retoma a consciência quando a Alemanha já se encontrava unificada, e do seu filho, que procurava evitar-lhe o choque dessa perceção, temendo que ela não resistisse a tal perda. Funcionando como uma excelente metáfora dessa impossibilidade afinal tornada real, metáfora também da viragem imensa sobre a qual passam agora três décadas.
Tal como o conhecemos hoje, o Leste europeu é, na sua diversidade, uma realidade totalmente inesperada para quem acreditou na possibilidade de ali se poderem desenvolver sociedades mais justas e democráticas. O «socialismo» opressivo e burocrático deu lugar ao capitalismo selvagem, enquanto novos conflitos e contradições se instalaram na região, servindo a insatisfação da maioria dos cidadãos de terreno fértil para novos autoritarismos, para o renascimento do lado mais tenebroso dos nacionalismos, para o ressurgimento dos fascismos. A democracia desejada e prometida em 1989 em pouco se desenvolveu, a prosperidade individual ao virar da esquina menos ainda, e, de novo, ninguém consegue prever o futuro. A «terra sangrenta», como chamou àquele grande espaço da Europa o historiador Timothy Snyder, permanece em ferida.