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31-10-2019        Público

Nas eleições regionais do passado dia 27 de outubro na Turíngia, venceu o Die Linke (A Esquerda) que, juntamente com o SPD e Os Verdes, formava até hoje a aliança maioritária e suporte do governo liderado por Ramelow. Essa solução está agora inviabilizada, pois o partido precisa dos deputados da CDU para formar novo governo. A alternativa é oferecer o poder à extrema-direita. Com efeito, foi a AfD (Alternative für Deutschland), uma força política com apenas cerca de cinco anos de vida, que advoga a saída da Alemanha da União Europeia, que considera o Parlamento Europeu supérfluo, que se assume como antijudaica, islamofóbica e que pretende expulsar os imigrantes e refugiados para fora da Alemanha, que mais exultou com os resultados.

Em Mühlhausen, uma terra que se orgulha de ter sido residência de Johann Sebastian Bach, quando lá ocupou o cargo de organista oficial, o atual presidente do município, citado pelo The Guardian, afirmou que larga parte dos seus 36.000 habitantes se sentem abandonados à sua sorte. Tal como na ex-RDA em geral, milhares de residentes da região viram as suas vidas repentinamente alteradas após a queda do Muro de Berlim. Alguns conseguiram ter sucesso, mas uma parte significativa nunca sentiu que a sua vida melhorasse com a reunificação. As agências que ajudaram no “funeral do socialismo”, gerindo a liquidação de muitas empresas têxteis, a principal base da economia desse município, desencadearam um processo de drásticas consequências sociais e que nesta região está a ter um alcance político de consequências imprevisíveis. A AfD aproveita-se desse sentimento e grita: “Vollende die Wende!” (Completar a transição.)

À semelhança do que ocorreu noutros países do campo soviético, a chamada “transição – dir-se-ia, do passado “radioso” para o “paraíso” capitalista – foi acompanhada de convulsões repentinas em que o campo económico e o social se revelaram de tal forma entrelaçados que os efeitos de um se repercutiram de imediato no outro sem que, entretanto, as populações locais se apercebessem do que lhes estava a acontecer e pudessem desse modo ter uma voz quanto ao destino que as esperava. A unificação da moeda, feita da noite para o dia, tornou os investimentos e os salários da Alemanha do Leste completamente depreciados em relação ao lado ocidental, reduzindo, no período de poucos meses, o produto nacional bruto da RDA para um terço do seu anterior valor. Empresas estatais entraram em colapso e, pouco depois, com a intervenção de agências públicas como a Treuhand, tratou-se de gerir a venda de largas centenas de unidades produtivas (empresas estatais), nomeadamente do setor têxtil, que sustentavam a força de trabalho em muitas localidades da região. Confrontada com as sérias dificuldades em encontrar investidores e pressionada para completar o processo, esta agência acabou cedendo muitos bens e equipamentos a preços subsidiados a dezenas de especuladores. As redes de corrupção, mais ou menos irradiadas a partir dos destroços do ex-Estado soviético, beneficiaram dos encerramentos abruptos e falências fraudulentas, com vendas a preços de saldo justificando a imagem que ainda hoje persiste na memória dos locais de uma RDA em liquidação, ou seja, desbaratada como uma loja “em fim de estação”. As assimetrias entre o Leste e o Ocidente são bem visíveis quer no plano económico, quer nas referências e subjetividades das populações, mas o traço comum é que o nacionalismo e o euroceticismo dão sinais ameaçadores de ambos os lados da “cortina rasgada”.

Não se trata de traçar paralelismos estreitos com outros ciclos históricos, mas é necessário avivar a memória. O crescimento do nazismo ocorreu num tempo diferente e com condicionantes internacionais distintas da atualidade. As correntes nacionalistas que levaram Hitler ao poder – começando com um escasso resultado nas eleições de 1928 para o Parlamento da República de Weimar, crescendo depois para 107 deputados em 1930 e finalmente para 230 membros no Reichstag, em 1932 –, com uma popularidade crescente, alimentada pelo ressentimento contra o que foi visto como um “Diktat” das potências vencedoras da I Guerra (o Tratado de Versailles de 1919), exaltavam os sentimentos de humilhação e abandono de diversos segmentos populares martirizados pela guerra, acicatando o ódio recalcado e a sua vontade de retaliação contra vários “inimigos” (externos e internos), em particular os judeus. O medo e o ódio são desde sempre fertilizantes poderosos da pulsão fascista.

Weimar goza ainda hoje da aura de ter sido sede do regime democrático do mesmo nome, que aí iniciou as bases da Constituição republicana em 1919. Mas se há cem anos essa democracia foi de curta duração, hoje a democracia parece frutificar e manifesta-se em múltiplas variantes. Desde a oferta cultural e patrimonial – onde o nome de Goethe é referência cimeira – à diversidade de propostas políticas, correntes ideológicas e eventos culturais. No Festival da Cebola, duas semanas antes do último ato eleitoral, o colorido das ruas e a variedade dos espetáculos exibiam os contrastes e a criatividade, mas também a civilidade convivial de um quotidiano em que os traços urbanos medievais coexistem, oferecendo ao visitante uma agradável paisagem de modernidade, própria de uma democracia madura e desenvolvida.

Todavia, por detrás da aparente normalidade das principais cidades deste estado, como Erfurt, Jena ou Weimar, parecem esconder-se zonas de penumbra em que os sinais de ódio e violência se multiplicaram nos últimos anos, ao mesmo tempo que grupos neonazis começam a levantar a voz e podem mesmo passar das ameaças aos atos. São sobretudo as mais pequenas localidades, provavelmente porque muitos dos seus habitantes se reveem na condição de “deixados para trás”, que fornecem o maior apoio eleitoral à extrema-direita, e é aí que tendem a ocorrer ações mais violentas. Na cidade de Halle, foi notícia há cerca de um mês o caso de um indivíduo que disparou contra um grupo de judeus numa sinagoga, ação de que Björn Höcke, o dirigente local do AfD, se tentou demarcar, mas os seus constantes discursos anti-semitas e racistas não o isentam de contribuir para este clima. Ficaram famosas as suas atitudes em atos públicos, como a interrupção numa entrevista na televisão ou proclamações contra o memorial ao nazismo em Berlim. Já durante a campanha eleitoral, o líder local da CDU, Mike Möhring, sofreu ameaças de morte, aparentemente na sequência da recusa em assumir qualquer aliança com o partido de Höcke, a quem acusou de ser “um nazi”. Curiosamente, a única região onde os democratas-cristãos ganharam (com 38%) foi na terra do referido líder regional da AfD. Isso evidencia a clivagem entre um conservadorismo mais moderado da CDU (o município de Eichfeld, com forte influência católica) e o radicalismo protofascista da AfD. Resta saber se a CDU nacional irá ceder a uma possível aproximação ao campo da esquerda na escala regional.

É importante frisar, no entanto, que a esquerda venceu as eleições, tendo o Die Linke crescido cerca de três pontos percentuais (de 28% para 31%). Além da popularidade da sua liderança (o ainda primeiro-ministro Bodo Ramelow), a campanha apoiou-se em slogans de combate ao crescimento da extrema-direita, tais como “Contra os resquícios nazis!”, “Não há lugar para o racismo e o ódio!”, mas são em larga medida as políticas sociais do governo que justificam o reforço do partido na região. O seu crescimento, no entanto, é muito tímido, quando comparado com os resultados da extrema-direita, que passou de 11% em 2014 para mais de 22% nesta eleição. Se a esquerda manteve e até aumentou a sua força à custa das maiores cidades (Erfurt, Weimar e Jena), onde também os Verdes resistiram (embora tenham reduzido a nível estadual), a AfD confirma uma preocupante tendência de vitória sobretudo nas pequenas comunidades do interior. Políticas públicas consistentes, economia revitalizada e reinvenção das utopias fornecem a matéria-prima em que a esquerda europeia e alemã terão de trabalhar.


 
 
pessoas
Elísio Estanque



 
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