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18-10-2019        Público

Como o nome indica, o Equador está geograficamente situado no meio do mundo. Pois tudo leva a crer que o neoliberalismo decidiu realizar os seus exercícios de fim do mundo neste país. E, talvez por isso, encontrou no povo equatoriano um obstáculo difícil ou impossível de superar. O neoliberalismo, como todo o mundo sabe hoje, é a versão mais anti-social do capitalismo global, porque estritamente vinculada aos interesses do capital financeiro. Não reconhece outra liberdade que não a liberdade económica e, por isso, é-lhe fácil sacrificar todas as outras. A especificidade da liberdade económica é o ser exercida na exacta medida do poder económico que se tem para exercê-la e, por isso, o seu exercício implica sempre uma forma de imposição assimétrica sobre os grupos sociais que têm menos poder e uma forma de violência brutal sobre os que não têm nenhum poder, a grande maioria da população empobrecida do mundo. Tal imposição e violência traduz-se sempre na transferência da riqueza dos pobres (traduzidas nas magras políticas de protecção social do Estado) para os ricos e na pilhagem dos recursos naturais, e dos activos económicos quando os há. O Fundo Monetário Internacional é o agente encarregado de legalizar esta transferência que o povo vê como roubo e que se traduz nas violentas políticas de austeridade impostas pelo capitalismo financeiro. Os casos mais recentes deste processo vão da Grécia a Portugal (2011-2015), da Argentina ao Brasil. O que se passa no Equador representa o paroxismo, o momento de intensidade máxima da vontade destrutiva do neoliberalismo. Para salvaguardar o direito dos credores e das empresas multinacionais, o país foi posto a ferro e fogo, declarou-se um estado de excepção, assassinaram-se e feriram-se os manifestantes e provocou-se o desaparecimento de centenas de crianças. Foi uma estratégia maximalista e de fim de mundo, disposta a arrasar o país para fazer valer a vontade imperial e das elites locais ao seu serviço.

O mais trágico de tudo isto é que o Equador foi o país da esperança na primeira década deste século. Fui consultor na elaboração de uma das mais progressistas Constituições do mundo, a Constituição de 2008, a primeira que no seu articulado consagrou os direitos da natureza e ofereceu uma alternativa ao desenvolvimento capitalista. Uma alternativa que assentava nos princípios de harmonia com a natureza e de reciprocidade que os povos indígenas sempre praticaram, um modelo de vida que, por ser tão estranho à lógica ocidental, teve que ser consagrado na sua versão original, em língua quéchua, o Sumak Kawsay, imperfeitamente traduzido por “bom viver”. Os anos que se seguiram foram anos de experimentação inovadora e de grandes expectativas, sobretudo para os povos indígenas que, sobretudo desde 1990, vinham a lutar pelo reconhecimento dos seus direitos, pelo respeito dos seus modos de vida e pela dignidade da sua existência como sobreviventes do grande genocídio colonial moderno, perpetuado hoje pelo novo colonialismo e pelo racismo que durante décadas caracterizou tanto os partidos políticos de direita como de esquerda.

A presidência da República era ocupada por Rafael Correa, um grande comunicador, sem grande enraizamento nos movimentos sociais, com um discurso anti-imperalista, sempre polémico em suas posições e pouco tolerante com divergências no seu próprio campo político. Mas realizou uma obra notável de renegociação da dívida externa e de redistribuição social, ainda que equivocada e talvez insustentável por duas razões principais. Por um lado, tinha dificuldade em reconhecer nos povos indígenas algo mais que gente pobre; os direitos colectivos destes, a sua cultura e a sua história pouco contavam; a redistribuição social envolvia centralismo do Estado e liquidação das autonomias de autogoverno dos indígenas garantidos pelo menos desde a Constituição de 1998; em breve se esmerou em demonizar as lideranças indígenas. Por outro lado, contra a Constituição e invocando dificuldades financeiras, abraçou o modelo de desenvolvimento capitalista neo-extractivista ainda que dando preferência aos investidores chineses em detrimento dos investidores norte-americanos, tradicionalmente presentes.

Rafael Correa esteve no poder entre 2007 e 2017 e foi seguido pelo seu vice-presidente de vários anos, Lenín Moreno. Inicialmente, dava a ideia de que seria apenas o estilo de governação que mudaria, e não a substância. Mas quem conhecia os antecedentes de Moreno devia estar mais atento. Ninguém se deu conta de que a perseguição judicial contra Correa por suposta corrupção, que Moreno apadrinhou, era apenas mais uma versão da nova estratégia dos EUA para neutralizar governantes que ponham em causa os interesses das empresas norte-americanas, sobretudo na área do petróleo: a suposta luta contra a corrupção. Foi assim contra Lula da Silva e Cristina Kirchner, entre muitos outros. A pouco e pouco, Moreno foi mostrando o seu verdadeiro objectivo, realinhar o Equador com os interesses dos EUA. O acordo com o FMI culminou a celebração dessa aliança. O chamado “paquetazo” decretado em 1 de Outubro, o pacote de medidas de austeridade, é de uma violência extrema para as famílias de baixos recursos.

O destino das receitas do FMI é conhecido. Nunca dão outro resultado para além de bons negócios para os seus investidores. Resultam sempre em empobrecimento das grandes maiorias. E apesar disso, ou talvez por isso, continuam a ser aplicadas e, de cada vez que o são, são anunciadas como a única alternativa para salvar o país. Que o FMI seja indiferente às consequências sociais desastrosas das suas receitas não surpreende, pois não se pode exigir que o capitalismo faça outra filantropia senão a que redunda em seu interesse. O que surpreende é que durante os primeiros doze dias da crise Lenín Moreno se tenha esquecido da força da resistência dos povos indígenas, uma resistência aprendida ao longo de séculos, que já derrubou três presidentes desde 1990, sendo bem possível que ele fosse o próximo. O mais trágico para o povo equatoriano é que os derrubamentos presidenciais anteriores (1997, 2000, 2005) foram muito menos violentos do que o que se anunciava para o próximo. A tímida declaração da Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanas, cuja incapacidade para defender com autonomia os direitos humanos é bem conhecida, foi um sinal dos tempos autoritários em que estamos.

Ao fim de doze dias de luta, Moreno cedeu. Revogou o decreto 883 que estabelecera as políticas de austeridade. É um recuo de sobrevivência política, aliás mal disfarçado. O decreto 894 começa por justificar a revogação do decreto 883 por razões técnicas (que não são outras senão a impossibilidade de o aplicar devido à resistência do povo), para logo adiantar as razões de paz social e de concórdia e o propósito de negociar com as organizações sociais as novas medidas. No art. 2.º do novo decreto determina-se que os subsídios se manterão e apenas se procederá à sua racionalização e focalização para que não beneficie deles quem não necessita ou os use para fazer contrabando.nos próximos tempos. Todos se recordarão da arrogância do seu propósito inicial de levar a austeridade adiante custasse o que custasse. Esse discurso dirigia-se ao FMI e não ao povo equatoriano. O novo discurso, com um toque patético, é um discurso dirigido ao povo equatoriano e é pouco mais que um discurso de rendição. De facto, a derrota principal não é de Lenín Moreno, é do FMI e das suas políticas de austeridade. Os exercícios finais abortaram, como se diz em gíria militar. Tal como abortaram na Argentina e noutros países. As dificuldades do FMI são o espelho do declínio do neoliberalismo nesta segunda década do século.

Os antecedentes de Moreno, agora mais expostos, fazem com que o povo equatoriano não desarme na nova fase de luta. Com a sua luta estão a dar uma lição ao mundo: o poder injusto, por mais forte, tem sempre um ponto vulnerável, a sua injustiça e a resistência pacífica e organizada contra ela.


 
 
pessoas
Boaventura de Sousa Santos



 
temas
FMI    Equador    economia    neoliberalismo